João Paulo Rodrigues Pereira
“A ética não trata do mundo. A ética deve ser uma condição do mundo…” (Wittgenstein)
Pensar o ser humano em sua plenitude foi por muito tempo uma audácia filosófica, não levaram em conta que ele, o ser humano, é um ser que não se revela por inteiro, mas grande parte do que se é se oculta atrás do fenômeno. Contudo, pode se dizer, dentre as coisas que se sabe, que o ser humano é um ser de relações. A todo instante está se relacionando, seja com coisas ou pessoas. Mas, sobretudo, uma relação o marca profundamente, a relação com outrem, uma vez que este sempre o interpela.
Neste sentido, este artigo quer analisar a temática do “outro” sobre o viés do filósofo Emanuel Lévinas (Lituânia 1906–1995 França), tendo em vista que o “outro” é o tema central de sua filosofia. Entretanto, o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar todo o conteúdo da filosofia de Lévinas, mas simplesmente tratar alguns aspectos que ressaltem a alteridade.
Primeiramente, faz-se mister saber que, para Lévinas, a relação com o outro é desejo. O eu vai em direção ao outro por causa do desejo metafísico, o desejo de lançar-se para fora, visto que o Eu está farto da saciedade do mundo. Este desejo metafísico não é satisfação de alguma necessidade, mas vai além da satisfação, pois o “desejo é desejo do absolutamente Outro” (COSTA, 2000, p. 112.).
No entanto, este desejo é insaciável, pois não é “como um Desejo que a posse do Desejável apazigua, mas como o desejo do infinito que o Desejável suscita, em vez de satisfazer” (TI, p.38). Isto porque o outro é sempre outro, é inapreensível, é infinito – é neste sentido que o outro interpela o Eu. Toda vez que ele se mostra, ele é outro. “O rosto de outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa” (TI, p.38). Assim, se impõe ao Eu com sua alteridade, isto é, nunca é o mesmo. “A outra pessoa é ‘absolutamente outra’ com relação ao eu e com relação ao que o eu presume que ele é” (HUTCHENS, 2007, p.37). Por isto, todas as vezes que se mostra, desfaz a idéia que o eu tem dele:
O Outro, que é termo do movimento que nasce da partida do “mesmo” para…, é outro num sentido especial. De modo algum pode ser absorvido, reduzido, totalizado, interiorizado, apropriado, representado, etc., pelo “o mesmo”; é uma exterioridade sempre exterior e é uma alteridade sempre outra. “O termo deste movimento – um outro lugar ou um outro – é chamado outro num sentido eminente” (COSTA, 2000, p.112)
Para Lévinas, o outro se expressa e se revela por meio do rosto, que é sua epifania. Porém, ela “deve ser entendida de modo inteiramente diverso da manifestação” (SUSIN, 1984, p.207), pois na manifestação estão implícitas todas as nuanças de aparecimento e exibição, que são próprias do fenômeno. Mas a epifania deve ser entendida como revelação, pois o rosto não se faz fenômeno, uma vez que o rosto não é um conteúdo que pode ser apreendido pelo intelecto, como uma verdade. “O rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo” (TI, p.173).
O rosto não é um dado que pode ser alcançado, algo que pode ser agarrado como um objeto que se coloca a mão, algo capturável pelos sentidos. “Neste sentido não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto, nem tocado – porque na sensação visual ou táctil, a identidade do eu implica a alteridade do objecto que precisamente se torna conteúdo” (TI, p.173). Isto é, enquanto as coisas se oferecem a mim como coisas dadas aos sentidos, o rosto não se oferece, ele recusa a ser conteúdo, ele recusa ser possuído. Pois quando “se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se podem descrever, é que nos voltemos para outrem como para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos!” (EI, p.77)
Deste modo, o rosto é expressão ou a manifestação por excelência. “Ele é expressão viva que fala por sua presença” (COSTA, 2000, p.129). O rosto não precisa de outra coisa para ter sentido. Isto é, o rosto tem sentido por si mesmo. “A face do outro tem significação por si mesma, impõe-se para além do contexto físico social” (REALE, 2008, p.425). Por ter significação por si mesmo o “rosto fala” (EI, p.79), e a primeira coisa que ele fala é um imperativo categórico “tu não matarás” – ou seja, farás tudo para que o outro viva – isto porque “a relação com o rosto é, num primeiro momento, ética” (EI, p.79). Assim, o rosto é expressão que na sua nudez proclama “não cometerás assassínio” (TI, p.178), por isso, por excelência, a epifania do rosto é ética.
Portanto, a alteridade faz com que outrem seja infinito – no sentido de que o eu não pode capturá-lo, absorvê-lo, visto que o outro é sempre outro e, mesmo se revelando por meio de seu rosto, nunca poderá ser englobado, pois sempre se revelará como absolutamente outro. Tendo em vista que o Eu quer se lançar para fora, para o absoluto, para o infinito, por causa do desejo metafísico, se depara com outrem que por sua alteridade se faz infinito. Por isto, esta relação com outrem é uma relação diferente, uma relação que sempre interpela o Eu. É também uma relação ética, uma vez que o rosto, significando por si mesmo, expressa em sua nudez, em seu primeiro dito, o imperativo “tu não matarás”, convocando-o à responsabilidade.
Referências
COSTA, M. L. Lévinas: Uma Introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
HUTCHENS, B, C. Compreender Lévinas. Petrópolis: Vozes, 2007.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1991.
_____. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 1982.
REALE, G. ANTISERI, D. História da Filosofia: De Nietzsche á Escola de Frankfurt. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2008.
SUSIN, L. C. O Homem Messiânico: Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas. Petrópolis: Vozes, 1984.
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Caro joão Paulo seu artigo ficou muito bom. Você conseguiu , de forma breve e clara, mostrar a profundidade do pensamento do grande filósofo Emmanuel Lévinas. Pensar no outro, ser humano, é pensar uma relação ética.
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Muito esclarecedor. À luz do escólio do Lévinas, bem entendido e bem explicado, tive uma verdadeira epifania sobre a relação ética com o outrem. Foi mesmo uma súbita sensação de compreensão da essência, do que significa o afeto de alguém, até mesmo a partir de um simples olhar, um simples gesto de reprovação ou aprovação provocado por meras movimentações dos nervos do rosto. Mas, quantos mistérios estão escondidos por trás desses sutis movimentos?
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João Paulo tive a oportuidade de ler seu texto e o parabernizo por sua explanação sobre o tema proposto. Gostei muito da caminhada que faz ao longo do texto saindo do estudo da relação até o encontro com o rosto do outro. Mas, gostaria de perguntá-lo sobre a relação que temos com o rosto. Ora, como posso contemplar essa revelação do rosto do outro se não pelos sentidos? Lembro-me aqui de Kant e sua estética transcendetal, embora não quero que imagine que me refiro ao conhecimento do outro, pois sei que esse não pode ser apreendido pelo Eu e sim contemplado. Espero ter conseguido expressar minha pergunta, se não poderemos dialogar futuramente.
Parabéns, um abraço e feliz natal.
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Obrigado Adriano, José Maurício e jackson pelo comentário é de grande valia.
Para Lévinas, como foi dito no artigo,o rosto é a epifania de outrem, no entanto este rosto não é físico, pois se fosse poderia ser apreendido pelo sentidos, por isto a epifania deve ser entendida como revelação e não manifestação, esta é propria do fenômeno, “o rosto não se faz fenômeno”. Alguns comentadores vão traduzir está epifania como olhar, face ou memo rosto.
Quando Lévinas fala que o rosto não pode ser apreendido pelos sentidos é no sentido de que o rosto não é físico. Mas o que nos é revelado por meio do rosto passa pelos sentidos. “O rosto não é um dado que pode ser alcançado, algo que pode ser agarrado como um objeto que se coloca a mão, algo capturável pelos sentidos.” “A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos!”
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João Paulo:
O seu artigo revela o nível profundo de compreensão que você tem do autor e do tema em questão. As idéias estão bem trabalhadas e expostas de modo claro e conciso. Parabéns!