Rodrigo Artur Medeiros da Silva
Ao afirmarmos com Aristóteles as máximas filosóficas de que a filosofia é a ciência de todas as coisas, pelas causas primeiras e princípios últimos, através da razão (Cf. MORA. 2005, p. 1044-1050), bem como a de que “todo homem tende, por natureza, ao saber” (ARISTÓTELES, 1969, p. 36), reverenciamos a premissa que versa a razão como o único instrumento que margeia a filosofia a denotar toda a realidade existente, ou seja, a dizer que os conceitos filosóficos só os são devido ao conhecimento humano. Ora, se só a filosofia pode conceituar todas as coisas e apenas o ser humano é provido da razão, o conhecimento pleno da realidade existente é peculiar apenas ao humano.
Contudo, algumas questões – formuladas a partir desta tese – parecem ainda permanecer em foco, tais como: será que de fato o homem pode conhecer todas as coisas? A linguagem – devido às suas diferentes formas de expressão – não seria, pois, um empecilho na conceptualização de toda a realidade? E é a partir destes questionamentos que tentaremos expor, de forma reflexiva, neste artigo, parte do pensamento de Jaques Derrida acerca da aceitação da diferença na linguagem filosófica. Segundo Derrida, um conceito pode ou não deixar de o ser devido às diferentes formas da linguagem conceituá-lo?
Logo no início do capítulo intitulado “A diferença”, de sua obra “Margens da filosofia”, Derrida introduz a problemática-chave para a reflexão deste artigo – “[…] Falarei, pois, da letra a, […] na escrita da palavra diferença […]” (DERRIDA, 1991, p. 33) – no intuito de referir-se a quem se adentra no mundo da linguagem para conceituar algo. Para que algo seja conceituado, o indivíduo que o conceitua deve se perceber como um ser de linguagem, como nos diz Wolfreys:
Aprendendo o alfabeto, alguém está “instituído”, colocado em relação ao sistema de escritura pelo qual alguém começa como sujeito-na-linguagem, que comunica através da coerência e da convenção, o hábito e os costumes do sistema, da instituição da escritura que dá voz ao “eu”, de modo que “eu” possa falar. (WOLFREYS. 2009. p. 74)
A palavra diferença, à qual Derrida se refere, será entendida apenas a partir da ocasião em que cada pessoa se vê obrigada a constatar o momento a partir do qual começa a fazer filosofia, ou seja, a dar nome e sentido às coisas existentes. Levando-se em conta a experiência subjetiva de cada pessoa e, ademais, as implicações desta à linguagem, eis que surge o emblema do neologismo francês différance.
Entendamos o sentido deste neologismo: literalmente, a palavra francesa differénce significa diferença, na língua portuguesa. Entretanto, Derrida se apoia numa peculiaridade do idioma francês para mostrar uma não correspondência entre a linguagem oral e a escrita na definição de algo – qualquer que seja – pelo ser humano. Se a letra a for usada no lugar da letra e, de modo que a palavra différence passe a ser escrita como différance, a pronúncia continuará a mesma, ao contrário do significado que esta fez com que aquela ganhasse.
Marc Angenot, traduz différance por “diferição”, rejeitando muito bem as propostas de “diferrência” ou “diferrância”, totalmente absurdas. No entanto, “diferição” apenas sugere uma parte da significação do termo, ou seja, apenas sugere “retardamento, adiamento” […]. O termo cunhado por Derrida, propositadamente pronunciável da mesma forma nas expressões différance e différence, porque a escritura não copia exactamente a fala, pretende ser uma síntese deste duplo movimento de ser diferente/dissemelhante e diferente/retardado. (CEIA, 2010)
Trata-se de uma desconstrução do logocentrismo contemporâneo, de modo que a escrita passa a ser vista não mais como uma representação de algo e, sim, como a infinitude de seu próprio jogo. Daí a razão de Derrida dizer que:
Tudo no traçado da diferença é estratégico e aventuroso. Estratégico porque nenhuma verdade transcendente e presente fora do campo da escrita pode comandar teologicamente a totalidade do campo. Aventuroso porque essa estratégia não é uma simples estratégia no sentido em que se diz que a estratégia orienta a tática a partir de um desígnio final, um telos ou um tema de uma dominação, de um controle ou de uma reapropriação última do movimento ou do campo. […] Se há uma certa errância no traçado da diferença, ela não segue mais a linha do discurso filosófico-lógico […].(DERRIDA, 1991, p. 38)
Observemos, pois, um exemplo claro para confirmar o que ora se encontra supracitado – a palavra homem: pode ser escrita de várias formas, de acordo com cada idioma (homem, homo, uomo, man etc.), ou até mesmo representada por um boneco desenhado, esculpido ou algo do gênero. Certamente, quem ler ou vislumbrar a palavra ou a imagem correspondente saberá que se trata de um homem. Com efeito, “o ser/fala/em toda a parte e sempre/através/de toda/língua” (DERRIDA, 1991, p. 63). Segundo Derrida,
[…] o silêncio piramidal da diferença gráfica entre o e e o a só pode funcionar no interior do sistema de escrita fonética e no interior de uma língua ou de uma gramática historialmente associada à escrita fonética bem como a toda a cultura de que ela é inseparável. (DERRIDA, 1991, p. 36)
E, ademais, se esta palavra “diferença” for abarcada nos seus dois respectivos sentidos literais – temporizar e ser outro (Cf. DERRIDA, 1991, p. 38-39), provenientes do verbo latino differre –, perceberemos que Derrida, ao dizer que “o signo representa o presente na sua ausência” (DERRIDA, 1991, p. 40) e ainda que “[…] quando o presente não se apresenta, então significamos, servimo-nos de subterfúgio de um signo” (Ibidem), versa sobre a necessidade intrínseca que temos de recorrer a outras palavras para que uma palavra seja definida, filosoficamente, como aquilo que é ou como aquilo que não é; trata-se, pois, do duplo movimento que a palavra différance provoca na filosofia de Derrida. Para clarear, de acordo com Carlos Ceia:
Podemos ilustrar o duplo movimento da différance com o seguinte exemplo: a palavra “infinito” pode ser definida por aquilo que é (o imensurável, o ilimitado, o absoluto, etc.) — o que significa que o sentido é sempre diferido, visto que precisamos de outras palavras para definir uma palavra —; e pode ser definida por aquilo que não é, ou seja, pelas suas diferenças (“finito”, “limitado”, “relativo”, etc.). (CEIA, 2010)
Certo é que podemos dizer, a partir dos pontos sobre os quais refletimos no presente artigo, que a diferença é um tratado que se destaca na filosofia de Derrida, a ponto de fazê-lo ser conhecido no rol dos filósofos como o filósofo da diferença – por trabalhar o seu pensamento a partir de uma contraposição entre a identidade do conceito e a diferença da linguagem, aceitando os vários modos de se interpretar e discutir sobre os vários conceitos peculiares ao pensamento filosófico. Como, então, fazer filosofia a partir de Derrida?
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969.
CEIA, Carlos. Différance. Disponível em: <www.fcsh.unl.pt/edit/verbetes/D/différance>. Acesso em: 3 maio 2011.
DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
FERRATER-MORA, José. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. Tomo II.
WOLFREYS, Julian. Compreender Derrida. Petrópolis: Vozes, 2009.