José Tarcísio da Costa
Neste artigo, partiremos do ponto crucial da filosofia de Descartes (1596-1650), o cogito, isto é, da sua existência como ser pensante – descoberta a partir da dúvida metódica[1]. E a partir deste ponto, adentraremos na perspectiva cartesiana sobre a existência de Deus, o ponto primordial deste artigo. Assim sendo, teremos uma melhor compreensão das razões que provam essa existência, à qual a filosofia cartesiana nos inquieta.
Aceitando a proposição “Penso, logo existo” (Cogito ergo sum), somos obrigados a concordar com Descartes sobre o fato de que para existir é preciso pensar; sendo assim, existo porque penso[2]. E, além disso, a minha existência depende apenas do pensamento.
[…] para que eu exista, não necessita de lugar algum, nem depende de nada material, de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, e totalmente diversa do corpo e mesmo mais fácil de ser reconhecida do que este e, ainda que o corpo não existisse, ele não deixaria de ser tudo que é.[3]
Mas como o existir subjetivo pode garantir a objetividade das coisas existentes, exteriores ao pensamento? A reposta para este questionamento só se validará a partir do momento em que o ser humano se der conta de que existe algo superior à sua razão, que lhe faz pensar ou acreditar em um ser mais perfeito que a sua existência ao qual não consegue visualizar: “Deus verdadeiro em que todos os tesouros da sabedoria e da ciência permanecem ocultos”[4].
Com efeito, diz-nos Descartes:
[…] coisas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e milhares de outras, não fazia tanto esforço em conhecer de onde se originavam, porquanto nada vendo nelas que me parecesse poder torná-los superiores a mim, podia crer que, se eram verdadeiras, dependia da natureza, do que esta possuía a perfeição e, se não eram, queriam isso significa que se originavam do nada quer dizer que estavam em mim por aquilo que eu tinha de imperfeito. A mesma coisa, entretanto, não podia acontecer com a ideia de um ser mais perfeito do que eu, pois era palpavelmente impossível retirá-la do nada. [5]
Deus – o garantidor da realidade exterior ao pensamento – é pensado em Descartes como “[…] supremo, eterno, infinito, onisciente, onipotente, criador de todas as coisas que existem além dele […]”[6]. Tal pensamento, assim concebido, abre margem para pensarmos que até mesmo o cogito seja garantido por Deus, tanto é que Cottinghan vai conceber o Deus cartesiano como “[…] um ser auto-evidente ou manifesto à luz natural, a saber, que terá de haver pelo menos tanta realidade na causa eficaz e total como no efeito de sua causa” [7].
Mas, segundo Descartes, como a ideia de Deus pode estar presente no intelecto a ponto de garantir toda a realidade existente? Descartes a concebe como adventícia, isto é, a algo apreendido pelo intelecto, de modo que o próprio fato de compreendermos o que significa a perfeição infinita de Deus demonstra-nos que só pode ter sido um ser mais perfeito que nós que nos possibilitou tal compreensão – mesmo que não consigamos visualizar, imaginar ou mesmo ter a capacidade de compreender essa perfeição:
Não importa que eu não consiga compreender o infinito ou o que haja incontáveis atributos adicionais em Deus que não poderei de maneira alguma compreender, e que talvez nem ocorram á minha mente… É suficiente que eu aprenda o infinito. [8]
Descartes, para concretizar a sua afirmação sobre Deus, se propõe a discorrer sobre o conceito de essência, analogando-o a um triangulo, o qual estando ou não à nossa vista tem por soma dos seus ângulos internos a importância de 180°. “Assim sendo, é pelo menos também certo que Deus, esse ser perfeito, é ou existe quando o ser pode ser qualquer demonstração geométrica” [9].
No caso de Deus,
É bem evidente que existência não poderá mais separar-se da essência de deus, assim o fato dos três ângulos serem iguais a dois retos, não podendo ser separado da essência de um triângulo… É… Uma contradição pensar em deus, (isto é, um ser supremamente perfeito), como não tendo existência (isto é, não possuindo uma perfeição). [10].
E deste modo, Descartes chega à conclusão da existência de Deus com o seguinte argumento:
Primeiro, Deus e definido como um ser perfeito. Não se garante interrogação algumas neste caso, como falar de um triângulo, poderá falar-se sobre a essência ou natureza de algo, sem se subordinar-se á sua existência real. Em segundo lugar, pretende-se que a perfeição suprema implica a existência. Um ser totalmente perfeito deverá possuir todas as perfeições, e deste modo, se fizesse uma listagem com as qualidades perfeitas de deus, ao lado de omnipotência, omnisciência e outras, ter-se-ia de incluir a existência. [11]
Portanto, como dizer que Deus é desnecessário na modernidade, uma vez que, ao que parece, já se faz necessário na fundamentação do pensamento de Descartes – considerado o pai do pensamento moderno? Em Descartes, por si só, a razão é capaz de responder à existência?
Referências
COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. Trad. Maria do Rosário Souza Guedes. Lisboa: Edições 70, 1986.
DESCARTES, René. Discurso sobre o método e princípios da Filosofia . Trad. Norberto de Paula Lima, Torrieri Guimarães. São Paulo: Ed. Folha de São Paulo, 2010. (Coleção Folha)
______. Meditações metafísicas. Trad. Homero Santiago. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[1] O termo dúvida metódica é utilizado no pensamento de René Descartes como um processo no qual tudo é colocado em dúvida, tendo em vista o alcance de uma certeza que seja clara e distinta das demais, assim como as ciências matemáticas. (Cf. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. p. 29-39)
[2] Cf. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. p. 41-55.
[3] DESCARTES, René. Discurso sobre o método e princípios da Filosofia. p. 28.
[4] COTTINGHAN, John. A filosofia de Descartes, p. 72.
[5] DESCARTES, René. Discurso sobre o método e princípios da Filosofia. p. 28.
[6] COTTINGHAN, John. A filosofia de Descartes, p. 73-74.
[7] COTTINGHAN, John. A filosofia de Descartes, p. 74.
[8] Apud. COTTINGHAN, John. A filosofia de Descartes, p. 88.
[9] DESCARTES, René. Discurso sobre o método e princípios da Filosofia. p. 29.
[10] Apud. COTTINGHAN, John. A filosofia de Descartes, p. 88.
[11] Cof. COTTINGHAN, John. A filosofia de Descartes, p. 88.