Fábio Avelar Salmen
Uma das questões forjadas a partir do pensamento de Kant[1] pode ser traduzida na inquietação que muitos de nós temos acerca do que devemos fazer em nossa caminhada existencial. Nossa autocrítica comportamental surge incessantemente em diferentes intensidades em decorrência de nossas atitudes nas mais variadas situações do cotidiano, em especial nas que se referem à nossa conduta moral: Devia eu ter agido assim? O que me levou a proceder desta ou daquela forma? Neste ensaio, pretendemos rever alguns elementos da filosofia kantiana sobre o dever, sem a pretensão de esgotá-los, de forma a oferecer algum embasamento para reflexão e reavaliação de conceitos.
No dizer de Kant, nada no mundo pode ser considerado bom sem restrição, a não ser a boa vontade. O pensamento expressa a crítica ao conceito de correção, vigente em muito do que se faz e que não resistiria a uma análise mais rigorosa de sua motivação intrínseca. Assim, comportamentos considerados virtuosos, como atos de coragem ou de humildade, compaixão ou temperança, podem não sê-lo dependendo da intenção com que são praticados.
NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrição possa ser considerada boa, a não ser uma só: uma BOA VONTADE. A inteligência, o dom de apreender as semelhanças das coisas, a faculdade de julgar, e os demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhes dê, ou a coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos, como qualidades do temperamento, são sem dúvida, sob múltiplos respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem entanto estes dons da natureza tornar-se extremamente maus e prejudiciais, se não for boa vontade que deles deve servir-se e cuja especial disposição se denomina caráter. O mesmo se diga dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a honra, a própria saúde e o completo bem-estar e satisfação do próprio estado, em resumo o que se chama felicidade, geram uma confiança em si mesmo que muitas vezes se converte em presunção, quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o princípio da ação. Isto, sem contar que um espectador razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade; donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz (KANT, 1964, p. 4, grifo do autor).
De igual modo, agir motivado pela sensibilidade é considerado doentio, ainda que tal agir seja feito porque constitui dever. Para Kant, aquilo que é moralmente correto ou correto do ponto de vista prático é o que só depende da razão, que nos move em vez de qualquer sentimento de compaixão ou estima. Existe uma oposição entre o ponto de vista da legalidade, também entendida como conformidade com a lei e a referência segundo a moralidade verdadeira, resultado da pureza de intenção, sendo que esta não corresponde ao desejo de execução, mas à aplicação de esforço para sua realização. É na intenção, independentemente do fim visado, que se encontra o valor moral de um ato e que o dever pode ser entendido como a necessidade de agir por respeito à lei (PASCAL, 1990, p. 114).
Portanto, dever é a ação à qual alguém está obrigado, apesar de podermos estar a ele obrigados de maneiras diferentes. Segundo Kant (2010, p. 46-48), aquilo que representa uma ação como necessária de forma objetiva é chamado imperativo categórico. A ação é tornada necessária não por meio da representação de algum fim que pode por ela ser atingido, mas de forma direta. Um imperativo categórico é uma lei moralmente prática, pois impõe uma obrigação quanto a certas ações. É uma lei que comanda ou proíbe. Essa lei converte ações em deveres, daí constituir-se em uma lei prática. Entretanto, indivíduos diferentes poderão ter máximas pessoais ou fundamentos subjetivos diferentes relativamente à mesma lei. Diferencia-se, assim, a legalidade, como a conformidade de uma ação com a lei do dever; já a conformidade da máxima (a forma como o sujeito deseja agir) de uma ação com uma lei corresponde à moralidade da ação. Um princípio de dever é um princípio que a razão a ele prescreve de forma absoluta e objetiva: como se deve agir. O imperativo categórico, afirmador do que seja a obrigação, corresponde ao princípio supremo da doutrina dos costumes, que pode ser formulado como sendo agir com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal.
A filosofia de Kant relativa ao dever estende-se também ao universo da felicidade dos outros, quando pondera sobre a razão da prática do bem. Diante de nossa própria necessidade de também sermos amados ou ajudados pelos outros, a única forma de fazer com que essa máxima seja obrigatória é considerá-la como lei universal. Tornamo-nos a nós mesmos um fim para eles e os tornamos nossos fins, quando praticamos a beneficência. A felicidade dos outros é, portanto, um fim que é também um dever (KANT, 2010, p. 162).
A contribuição de Kant no sentido de investigar analiticamente os conceitos relativos ao dever nos conduz a buscar um melhor entendimento do que seja a nossa boa vontade, valorizada pelo filósofo, bem como do que entendemos por dever, diferenciando-se o meritório agir por dever de ações pela busca de conformidade com o dever. Quando somos honestos ao pagar o que devemos a quem nos emprestou agimos em conformidade com nosso dever, porém, se temos interesse em sermos bem vistos porque outros devedores não o fazem, não se pode dizer que agimos por dever. Analogamente, ao ajudarmos alguém necessitado porque isso nos faz sentir bem temos menor valor moral do que se o fizéssemos sem tal motivação sensível.
Podemos buscar auxílio nas Escrituras para a avaliação de nossa conduta moral. “De fato, se amais os que vos amam, que merecimento tereis?… E se saudais só vossos irmãos, que fazeis de extraordinário?” (BÍBLIA SAGRADA, 2006). O texto bíblico ilustra a prática não característica do exercício da boa vontade. Quando agimos tendo como motivação a expectativa de recebermos algo equivalente em troca, perdemos o mérito da boa vontade kantiana, entendida como a vontade de agir por dever. A resposta a tal motivação, embora se nos apresente como algo simples e corriqueiro, assume dimensão de maior profundidade e nos remete ao questionamento inicial sobre a intenção que nos move a realizá-las.
Retomando a abordagem de Kant sobre o dever como agir por obrigação e livre de interesses pessoais, poderemos considerar que agir honestamente ou não maltratarmos os outros ou mesmo praticar o bem a quem quer que seja será moralmente acertado se assim o fizermos pelo dever e não por quaisquer inclinações. Tais ações são então consideradas devidas porque se assim o fizermos é porque assim é esperado, assim devíamos fazer. Longe de dirimir todas as dúvidas que tais discussões suscitam, deixamos o estímulo à reflexão sobre o conjunto de fenômenos sociais bem como e, principalmente, sobre nossas ações como cidadãos e pessoas de bem que procuramos ser, no sentido de buscarmos coerência com nossos princípios de vida, aproximando-nos do ideal da prática da boa vontade kantiana.
Referências
BÍBLIA SAGRADA, N. T. Evangelho segundo Mateus. Aparecida: Editora Santuário, 2006. cap. 5, p. 1463.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. Disponível em: http://www.4shared.com/get/qJdq8OGn/kant_fundamentacao_da_metafisi.html. Acesso em: 25 maio 2011.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. In: ______. Livros que mudaram o mundo. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. v. 8.
PASCAL, Georges. A lei moral. In: ______. O pensamento de Kant. 3. ed. Tradução de Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1990. Original francês. [1977].
[1] Kant (1724 – 1804) nasceu em Königsberg, Prússia Oriental (território hoje dividido entre Polônia, Lituânia e Rússia). Autor de extensa obra, é considerado como um dos grandes pensadores da História, tendo produzido uma verdadeira revolução na filosofia com sua crítica fundamental de conceitos, metodologias e do próprio eixo do objeto filosófico.
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Brilhante, ótima visão com idéias muito bem concatenadas sobre o pensamento Kantiano.
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Fábio, boa reflexão ideias fecundas muito bem delineadas sobre o pensamento de Kant.