João Paulo Rodrigues Pereira
“A consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo”
Percebe-se que ao longo da história, o homem muito se perguntou sobre a existência de Deus. Muitos foram os que tentaram provar a existência de Deus, como também, negá-la. Mas, sobretudo, esta temática muito inquietou e inquieta o ser humano. Deus existe ou não existe? Na tentativa de propor uma resposta a esta inquirição, este texto tem como escopo explanar o viés do filósofo Feuerbach (1804-1872) sobre a questão do ateísmo.
Comumente a definição que se tem de ateísmo[1] se configura com a definição dada pelo dicionário da língua Portuguesa, segundo o qual é a “doutrina ou atividade de espírito que nega categoricamente a existência de Deus” (Houaiss, 2001, p. 331). Porém este conceito no decorrer da história tornou-se um termo ambíguo, pois foi usado não somente para designar quem nega a existência de Deus, como também, para apontar quem nega uma lei religiosa, ou uma doutrina ou mesmo, uma concepção cristalizada de Deus etc.; em síntese, o termo ateísmo foi usado de várias formas no linear da história.
Um bom exemplo desta ambiguidade foi o que aconteceu nos primórdios do cristianismo: “Os primeiros cristãos foram tomados por ateus, por que se negavam a fazer sacrifícios aos deuses pagãos” (DALBOSCO et. al., 2000, p.54). Outro exemplo desta ambiguidade seria o próprio Feuerbach que é considerado ateu, mas, categoricamente, não nega a existência de Deus.
Fueurbach é considerado o pai do ateísmo moderno e “o pai da critica contemporânea a religião” (ESTRADA, 2003, p.153). Sua ótica ateia é inovadora, uma vez que ele traz a reflexão sobre a existência de Deus e sobre a religião, que até então estava atrelada a natureza para o próprio homem, como nos mostra Zilles (2010, p. 99): “Decisivo é que agora o ponto de partida para a consideração filosófica do problema de Deus e da religião não é mais a natureza, mas o próprio homem”.
Na obra a “Essência do Cristianismo”, Fueurbach trata, especificamente, sobre a questão da religião e do ateísmo. Seu ponto de partida é a distinção entre o homem e o animal: “ora o caráter essencial do homem, sua diferença específica, é a consciência; entretanto, não uma consciência de si como indivíduo, como a poderiam ter também os outros animais, mas a consciência de si como espécie. Ter consciência de si como espécie significa ter consciência da própria essência universal, da própria humanidade” (ROVIGHI, 1999, p. 71).
Assim, a consciência que diferencia o homem dos animais é a consciência que ele tem de sua própria essência. Com isso, Fueurbach quer mostrar que esta distinção seria a base que fundamentaria a religião. “A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal – os animais não tem religião” (Fueurbach, 1988, p. 43). O homem tem como objeto de sua consciência a sua essência, e isto seria a base da religião, mas para entender esta base da religião faz-se mister saber qual é a essência do homem. Segundo Fueurbach a essência do homem é:
A razão, a vontade, o coração. Um homem completo possui a força do pensamento, a força da vontade e a força do coração. A força do pensamento é a luz do conhecimento, a força da vontade é a energia do caráter, a força do coração é o amor. Razão, amor e vontade são perfeições, são os mais altos poderes, são a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade de sua existência. O homem existe para conhecer, para amar e para querer (Fueurbach, 1988, p. 45).
Ora, o que faz o homem ter consciência de si mesmo é o objeto da reflexão da consciência, e o objeto da sua consciência é a sua própria essência, que são a razão, a vontade e coração, assim, os elementos que constituem a essência do homem o fazem ter consciência de si mesmo. Porém, não somente os objetos que compõem a essência do homem, mas também, os objetos que estão distantes dele: “também a lua, o sol e as estrelas gritam para o homem o gnôthi sautón, o conheça a ti mesmo. Pelo fato dele os ver e os ver da forma que ele os vê, tudo isso já é testemunho da sua própria essência. (…) O céu lembra o homem de seu designo, lembra que ele não nasceu somente para agir, mas também para contemplar” (Fueurbach, 1988, p. 47).
Segundo Feuerbach, os elementos que constituem a essência do homem são perfeições do homem, e por serem perfeições são denominadas como forças infinitas. Mas, concomitantemente, não se pode negar que o homem é um ser imperfeito; constantemente ele erra. Como explicar este paradoxo? Para Feuerbach (1988, p. 48), “Toda limitação da razão ou dá essência do homem em geral baseia-se num engano, num erro”. O homem só pode ter consciência da sua própria limitação enquanto indivíduo, pois enquanto espécie ele é perfeito e infinito. Isso quer dizer que o engano acontece quando o homem não tem coragem de assumir a culpa dos seus erros e das suas falhas, e por vergonha, direciona o erro para a espécie.
Se ele, porém, fizer das suas limitações as limitações do gênero, explica-se isto pelo engano dele se considerar idêntico ao gênero – um engano ou ilusão que, de resto, relaciona intimamente com o comodismo, a preguiça, a vaidade e a ambição do indivíduo. Uma limitação que reconheço como a minha limitação, esta me humilha, me envergonha e me intranquiliza. Então para me libertar desse sentimento de vergonha, desta intranquilidade, faço das limitações da minha individualidade as limitações da própria essência humana (Fueurbach, 1988, p. 49).
Da mesma forma que o objeto da consciência do homem é infinito, por ser sua própria essência, a religião tem como objeto de sua reflexão um objeto infinito, isto porque “o homem põe suas qualidades, suas aspirações e seus desejos fora de si, afasta-se, aliena-se constrói sua divindade” (REALE, 2005, p.159.). Neste sentido, a religião retira os elementos que compõem a essência do homem que está de dentro dele mesmo e transporta-os para um ser separado – o homem diviniza sua própria essência. Por isso:
A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conhece o seu Deus: ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para o homem seu espírito, seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades oculta do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor. (Fueurbach,1988, p.55.)
Assim o objeto da religião é a essência do homem. “O gênero ou a essência universal (a humanidade) que é objeto da consciência do homem é infinito, ora, o objeto da religião é infinito, portanto, o objeto da religião é o mesmo objeto do homem que tem consciência de si (…), isto é, a própria essência do homem” (ROVIGHI, 1999. p. 72). Ou seja, o que a religião faz é tirar a essência do homem que está dentro dele e direcioná-la para fora dele e denominá-la Deus.
Neste sentido, o que a religião aponta ser Deus, nada mais é do que a própria essência do homem. “Em Deus o homem projetaria inconscientemente a sua essência, o que ele é ou quer ser, e se sujeitaria assim a um ente por ele enriquecido de todas as suas propriedades, mas percebido como estranho” (ZUCAL, 2000, p.217). Desta forma, o que as religiões denominam ser Deus, é, para Feuerbach, o próprio homem. “Não é o homem que é a imagem e semelhança de Deus, afirmação fundamental do teísmo cristão, mas Deus é a imagem do homem que se projeta em uma entelequia” (ESTRADA, 2003, p.154).
Assim, a crítica que Feuerbach faz a religião é que ela aponta para uma realidade existente fora do homem, mas, ao contrario, esta realidade não existe. O que a religião mostra estar fora do homem, no caso Deus, é a própria essência do homem, como nos mostra Marx e Engels na obra ideologia Alemã (2002, p. 100-101): “Feuerbach parte do fato de que a religião torna o homem estranho a si mesmo e duplica o mundo em um mundo religioso, objeto de representação, e um mundo profano. Seu trabalho consiste em reduzir o mundo religioso à sua base profana. (…) Feuerbach converte a essência da religião em essência humana”.
Portanto, o que Fueurbach faz não é negar a existência de Deus, mas afirma que o homem é Deus e Deus é homem. “A essência divina não é nada mais do que a essência humana (…) por isso todas as qualidades da essência divina são qualidades da essência humana” (Fueurbach, 1988, p. 57). Assim o ateísmo de Feuerbach consiste, unicamente, em negar um ser divino fora do homem, e a firma que as potencialidades de Deus, suas característica, se encontram no próprio homem. As perfeições de Deus é a essência do homem, ou seja, as perfeições de Deus são as perfeições do homem e vice-versa.
Referências
ATEÍSMO. In: DALBOSCO, Honório (Coord.). Dicionário de Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000. p. 54.
ATEÍSMO. In: ALEMIDA, Aires (Org.). Dicionário escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano, 2009. p. 46.
ATEÍSMO. In: HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Sales. Grande dicionário Hoauiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 331.
ESTRADA, Juan Antonio. Deus nas tradições filosóficas: da morte de Deus á crise do sujeito. São Paulo: Paulus, 2003. (vol. 2)
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. São Paulo: Papirus, 1988.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. Trad. Luiz Claudio de Castro e Costa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do romantismo a empiriocriticismo Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005. (vol. 5)
ROVIGHI, Sofia V. História da filosofia contemporânea: do século XIX à neoescolástica. São Paulo: Loyola, 1999.
ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 2010.
ZUCAL, Silvano. Cristo na filosofia contemporânea: de Kant a Nietzsche. São Paulo: Paulus, 2000. (vol. 1)
[1] Etimologicamente a palavra ateísmo deriva do termo grego αθεός: α é o privativo ou a negação; e θεός significa Deus, ou seja, αθεός é a negação de Deus. (Cf. Dicionário de Pensamento Contemporâneo, p.54). “Em sentido fraco, [o ateísmo seria] descrença na existência de uma entidade sobrenatural particular (o Deus teísta), onipotente, omnisciente, perfeitamente boa, criadora do mundo, mas distinta deste e dotada de auto-existência (não existe por causa de outra coisa). Em sentido forte, é a crença na inexistência do divino em geral. A distinção é importante, pois muitas pessoas religiosas não são teísta […] nem ateístas, ou seja, acreditam em entidades sobrenaturais que não correspondem a idéia do Deus teísta, que é basicamente a idéia de Deus presente nas grandes tradições religiosas do ocidente: Judaísmo, cristianismo e islamismo. (ALEMIDA, 2009, p.46).