João Paulo Rodrigues Pereira
Introdução
A proposta filosófica da contemporaneidade é, sobretudo, uma tentativa de propor novos caminhos para a filosofia, uma vez que esta perdeu o seu sustentáculo que a impulsionou até a modernidade: a metafísica. Por causa disto, os filósofos contemporâneos foram instigados a desbravar outros modos de pensar filosoficamente, como Heidegger com a ontologia e Levinas com a ética como filosofia primeira.
Nesta perspectiva, propõe-se como escopo deste artigo explanar a crítica que Levinas faz a ontologia Heideggeriana, sendo que este é o ponto de partida para Levinas propor a ética como filosofia primeira, ou seja, uma nova perspectiva para se pensar a filosofia na contemporaneidade. Mas antes, pretende-se demonstrar em sucintas palavras a ontologia de Heidegger, para assim, desenvolver com argúcia a crítica de Levinas.
A ontologia de Heidegger
Heidegger (1889-1977), ao analisar a história da filosofia, percebe que todas as vezes que os filósofos tentaram falar do Ser, falaram do ente. Neste sentido, “A analítica existencial tem como primeiro efeito a superação da entificação do ser que era confundido com um ente determinado em cada época da metafísica (idéia, substância, ipsum esse, cogito sum, eu transcendental, saber absoluto, etc)” (STEIN, 2008, p.287.). O Ser foi confundido com o ente, por conseguinte, houve o esquecimento do Ser na história da filosofia.
Por isso, sua proposta ontológica é pensar o Ser a partir de sua manifestação, ou seja, na existência, propriamente no ser humano em quem o Ser se manifesta por excelência (no Dasein). Conforme o próprio Heidegger afirma: “A investigação de uma ontologia fundamental deve começar pela análise do homem, enquanto está nele a questão do ser” (HEIDEGGER, 1997, p. 315). Assim, o Ser que fora antes esquecido pela filosofia é retomado por Heidegger, por meio da ontologia, sob novo viés: a própria existência humana. Como mostra Levinas:
A ontologia, dita autêntica, coincide com a facticidade da existência temporal. Compreender o ser enquanto ser é existir. (…) A ontologia não se realiza no triunfo do homem sobre a sua condição, mas na própria tensão em que esta condição se assume. (…) O homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas necessidades e seu trabalho, sua vida social e sua morte articulam, com um rigor que reserva a cada um destes momentos uma função determinada, a compreensão do ser ou da verdade (LEVINAS, 1997, p. 22).
Portanto, Heidegger trás para a própria existência humana a reflexão sobre o Ser, propriamente, no Dasein, isto porque, a existência é o que há de mais peculiar do homem, “é o homem, considerado em seu modo de ser, é o Dasein, o ser aí, em que aí indica ao mesmo tempo seu ser de fato, seu encontrar-se no mundo sem ter-se colocado ali por conta própria, é o lugar em que se manifesta o ser” (ROVIGHI, 1999, p.399).
A crítica de Levinas
Seguindo este viés, de analisar a história da filosofia, Levinas se contrapõe a Heidegger, afirmando que o esquecimento não foi o do Ser, mas o do outro. “Para a tradição filosófica, (…) o Outro se reduz ao Mesmo” (LEVINAS, 2008, p. 34). A causa deste esquecimento seria o pensamento totalizante da ontologia. Por isso, sua proposta filosófica é mostrar a ética como ponto de partida para a filosofia, a ética como filosofia primeira, ressaltando que a totalidade[1] aniquila a alteridade do outro. Para tanto, Levinas parte da crítica à ontologia, a qual será tratada a seguir.
A principal crítica à ontologia é que ela não leva em consideração o diferente, é uma generalização, uma universalização, é um pensamento totalizante, uma violência ao diferente. Neste sentido, violência seria: “aprisionar todos os entes, diferentes entre si, numa generalização que os condiciona e os condena a “não poder deixar de ser”, a “não poder ser outro” e a “não poder ser diferente”” (COSTA, 2000, p.119). Deste modo, na ontologia não há espaço para se pensar o outro enquanto outro, não há espaço para se pensar o diferente.
“A relação com o ser, que actua como ontologia, consiste em neutralizar o ente para o compreender ou captar” (LEVINAS, 2008, p. 33). Assim, a ontologia quer compreender o ente, mas sempre em função da compreensão do ser; não avalia o ente enquanto. “Não é, portanto, uma relação com o outro como tal, mas a redução do outro ao mesmo” (LEVINAS, 2008 p. 33). Isto porque a ontologia “não é um inocente tratado teórico sobre os entes. É a verbalização pura e neutra por meio da qual o ser puro constitui e governa o mundo como horizonte da compreensão lúcida dos entes e de seus modos de ser” (COSTA, 2000, p.97).
A ontologia, então, pode ser considerada como a filosofia do poder: aniquila o diferente; não questiona a soberania do mesmo; o ente é em vista do Ser e não de si mesmo. E, principalmente, é um pensamento violento e motivador da guerra:
A violência ontológica da qual nada nem ninguém fica de fora. A guerra destrói a identidade e a possibilidade da alteridade de todos os que nela estiverem envolvidos. Na guerra se mostra a “violência face ontológica do ser” e é esta face que é decantada como totalidade na filosofia ocidental. A ontologia dirige as pessoas, lhes infunde um sentido e significado, as faz agir e desempenhar papéis que não são os seus. Traça-lhes um destino, um porvir, um sentido e significado últimos que coincidem, em seu último horizonte, com a epopéia do ser (COSTA, 2000, p. 97).
O pensamento totalizante engloba toda compreensão dos entes dentro de um mesmo parâmetro, isto faz com que a identidade do mesmo e a alteridade de outrem sejam destruídas; não há espaço para manifestar a exterioridade, por isso, a ontologia é um pensamento violento que proporciona a guerra. “A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem”(LEVINAS, 2008, p.8)
Na relação ontológica há uma tentativa de compreender, de capturar, de abarcar o ente. No entanto, para Levinas, esta tentativa é fadada ao fracasso diante de outrem, uma vez que o outro “é um fundamental estranho, um antirreflexo do mesmo (…). Sua alteridade consiste fundamentalmente em permanecer ileso a toda representação intelectual” (SOUZA, 2009, p. 129). Assim, a totalidade ontológica se depara com um ser que não se manifesta enquanto fenômeno, sendo assim, o outro não pode ser absorvido, totalizado e representado pelo mesmo.
O encontro com outrem consiste no fato de que, apesar da extensão da minha dominação sobre ele e de sua submissão, não o possuo. Ele não entra inteiramente na abertura do ser em que já me encontro como campo de minha liberdade. Não é a partir do ser em geral que ele vem ao meu encontro. Tudo que dele me vem a partir do ser em geral se oferece por certo a minha compreensão e posse. Compreendo-o a partir de sua história, do seu meio, de seus hábitos. O que nele escapa a minha compreensão é ele, (LEVINAS, 1997, p. 31).
Assim, o outro não pode ser objeto de compreensão do eu, pois seu rosto não se faz fenômeno. O outro é exterioridade, é alteridade absoluta. Ele foge à posse do meu poder.
Conclusão
Portanto, segundo Levinas, a ontologia é um pensamento totalizante, uma forma de pensar violenta que causa a guerra. Nesta forma de pensar, não há espaço para se pensar o outro, uma vez que sua alteridade é aniquilada pela generalização, ou seja, pela tentativa de compreender de abarcar todos os entes, mas sempre em vista da compreensão do ser. No intuito de contrapor a ontologia e afirmar a ética como filosofia primeira, Levinas mostra que o outro não pode ser compreendido, capturado como um fenômeno, pois o outro se revela como absolutamente outro. Assim, Levinas propõe a ética como filosofia primeira a partir da alteridade do outro.
Referências
COSTA, Márcio L. Lévinas: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
HEIDEGGER, Martin. O ser e tempo. In: VV. AA. Os filósofos Através dos Textos: de Platão a Sartre. São Paulo: Paulus, 1997.
LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaio sobre a alteridade. Trad. Pergentino S.; Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 1997.
_______. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2008.
ROVIGHI, Sofia, V. História da filosofia contemporânea: do século XIX à neoescolástica. São Paulo: Loyola, 1999.
SOUZA, R. Timm de. In: PECORARO, Rossano. (Org.). Os filósofos: clássicos da filosofia, de Ortega y Gasset a Vattimo. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 126-144. Vol. III.
STEIN, Ernildo. In: PECORARO, Rossano. (Org.). Os filósofos: clássicos da filosofia, de Kant a Popper. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 281-309.Vol. II.
[1] Totalidade é a realização da dinâmica do mesmo, a síntese final das energias que integram o Outro a uma unidade sólida: a história de uma violência. (SOUZA, 2009, p. 130).