Rafael Guimarães de Oliveira
Introdução
O poder e sua relação com a prisão, no pensamento de Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, marca-se pela crítica histórica às relações de poder. A nossa abordagem tem um caráter descritivo para apontar o que o autor pensou nessa perspectiva do poder e da prisão. Depois de apontar uma virada, a partir do século XVIII, no modo de execução do poder na história, Foucault aplica esse novo modelo de relações em uma análise sobre a prisão. Que considerações pertinentes podemos tirar de seu pensamento, quando falamos de criminalidade depois daquilo que ele chamou de “nova ‘economia’ do poder” (FOUCAULT, 1979, p. 8)?
Este artigo tem o intuito de expor o caminho que Foucault percorreu para estabelecer a relação entre o novo sentido de poder e a prisão, além da relação com a criminalidade e a delinquência. Vamos, primeiramente, definir o que o autor entendeu como uma nova economia do poder (FOUCAULT, 1979, p. 8), para depois apontar a relação direta que ela tem com a prisão. Com isso, este artigo pretende também provocar inquietações sobre até que ponto esse pensamento está presente e atuante no mundo pós-moderno.
O poder e a sua nova economia
O pensamento de Foucault sobre o poder tem como consideração fundamental a passagem da punição à vigilância. O momento anterior a essa passagem é o que compreende os séculos XVI e meados do século XVIII, onde estão historicamente alojadas as monarquias absolutistas. Dentro desse sistema de governo, o poder era identificado facilmente, uma vez que era hierarquizado: primeiro o monarca, que detinha todo o poder de deliberar o que fosse de sua vontade; e depois seus súditos, que eram obrigados a acolher os desígnios do rei, caso contrário, seriam severamente punidos. Tratava-se de um período onde o poder era centralizado e visível na figura da majestade.
O momento que proporcionou a mudança de execução do poder está no fim do século XVIII e início do século XIX. Alguns aspectos desse período contribuíram para essa passagem, a saber:
Aumento descompensado das populações, explosão de manifestações revoltosas, reordenamento das formas de acúmulo de capitais (consolidação do sistema capitalista) e das relações de produção (ascensão burguesa) (…) contribuíram para uma (re)significação das práticas culturais e dos códigos de sociabilidade. (FOUCAULT, apud SILVA, 2007, p. 7).
Depois desses eventos, a passagem para a nova economia do poder se efetivou. Agora o poder é exercido de forma diferente, e forma tal que sustente o sistema capitalista e as suas necessidades. Ele agora é sutil e mais arrojado, é estratégico. Ele não quer mais punir, a exemplo do poder monárquico, mas quer agora, na sociedade capitalista, vigiar, configurando o poder disciplinar (MARQUES, 2006, p.7). O poder não é mais uma propriedade, de algum elemento que representa o Estado, mas é uma relação que está junto com povo:
A estrutura social, [para Foucault], atravessada por múltiplas relações de poder, que não se situam apenas em um local específico, como um aparelho de Estado, mas que são imanentes ao corpo social. Relações de poder estas que atingem a realidade mais concreta dos indivíduos e que estão ao nível do próprio corpo social, penetrando nossas práticas cotidianas. (MACHADO apud MARQUES, 2006, p. 3).
Nas palavras do próprio autor: “O século XVIII encontrou um regime por assim dizer sináptico [lógico] de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre o corpo social.” (FOUCAULT, 1979, p. 131).
A prisão e sua relação com a “nova economia do poder”
A partir do fim do século XVIII, com o advento do capitalismo, a riqueza se apresenta de uma forma diferente da riqueza dos séculos XVI e XVII, que consistia em posse de terras. Ela está investida em um novo tipo de materialidade, que é em mercadorias, estoques, máquinas, oficinas, matérias-primas, que existem para expandir o capital (FOUCAULT apud SILVA, 2007, p. 7). Sendo assim, “o alvo das ilegalidades [criminalidades] [passa a ser] os bens.” (FONSECA apud SILVA, 2007, p. 8). Daí, então, é necessário criar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma material de fortuna contra possíveis corruptos, e quem fica responsável por desenvolver esses mecanismos é o poder disciplinar (FOUCAULT, apud SILVA, 2007, p. 8).
Seguindo a perspectiva apresentada acima, já percebemos a relação existente entre o poder e a prisão. Essa última é, segundo Foucault (1996 apud SILVA, 2007, p 8), “a reforma psicológica das atitudes e dos comportamentos dos indivíduos”. É a relação entre poder e a prisão que vai garantir a tranquilidade dos bens dos capitalistas. A prisão é gestada pelo poder disciplinar, e ela está em nossa sociedade como polícia de comportamento para quem queira ir contra o sistema capitalista. Ora, quem quiser ir contra o sistema, seja roubando ou manifestando contra seu funcionamento, deve ser condenado à prisão, a partir de paradigmas que o poder disciplinar estabeleceu.
Mas, o aprisionamento de pessoas para esse fim causa impactos, que por ora são, para os capitalistas, bons; e ora são, para a sociedade, ruins. Nesse sentido, a existência de condenados é boa para os capitalistas, pois os rebeldes e infratores estarão longe de seus negócios e servindo de exemplo de condenação para quem quiser fazer o mesmo; e má para a sociedade, que tem na cadeia não uma reabilitação de pessoas que caíram no erro, mas um centro profissionalizante de delinquentes (FOCAULT, 1979, p. 133):
Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilidade estratégica daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis tanto no domínio político como no econômico. Os delinquentes servem para alguma coisa. (FOUCAULT, 1979, p. 131-132).
Os efeitos da relação entre o poder disciplinar e a prisão hoje
Depois desse caminho percorrido, cabe uma pergunta que não temos a pretensão de respondermos aqui, mas sim de inquietar a reflexão sobre os efeitos do poder disciplinar sobre a questão da segurança pública hoje, no Brasil e no mundo capitalizado: há alguma diferença, seja de estrutura ou de enfoque social, entre o sistema prisional vigente hoje e aquela tendência apontada por Foucault nos séculos XVIII e XIX?
O que, a grosso modo, percebemos é que os sistemas prisionais não cumprem a missão proposta, de reabilitar os condenados. Percebemos que é lá dentro que a bandidagem ganha mais força e efetivação. E em relação com o sistema capitalista, devemos apurar qual é a sua participação nesses eventos, tendo em vista que, ao passar do tempo, esse sistema tem ficado mais cruel, no que diz respeito à desigualdade social, e mais ambicioso, no que diz respeito ao capital. O que nos parece é que a situação dessa relação só vem ganhando dimensões cada vez maiores e mais preocupantes.
Considerações Finais
A relação que existe entre o poder e a prisão, que Foucault apontou em seus estudos, é a que o poder disciplinar, fruto do período do século XVIII adiante, administra a logística dos interesses capitalistas no sistema prisional. Embora cause efeitos preocupantes, essa relação não é discutida pela história convencional, por justamente tratar de uma associação com um poder que é caracteristicamente sutil e arrojado. Os créditos dessa denúncia são de Foucault, mas cabe a nós, cidadãos integrantes desse sistema de poder, atualizar essa apontamento foucaultiano e lutar por um sistema mais justo e humano. Não é uma tarefa fácil, uma vez que o cerne desse poder não está fora do corpo social, mas dentro e diluído, e cada vez mais difícil de ser identificado.
Referências
FONSECA, M. A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: EDUSC, 1995 apud SILVA, José Cláudio Sooma. Foucault e as relações de poder: o cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica. Revista Aulas, Campinas, n° 3, 2007. Disponível em: <www.unicamp.br/~aulas/pdf3/17.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2011.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. 296 p.
______. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996 apud SILVA, José Cláudio Sooma. Foucault e as relações de poder: o cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica. Revista Aulas, Campinas, n° 3, 2007. Disponível em: <www.unicamp.br/~aulas/pdf3/17.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2011.
______. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2005 apud SILVA, José Cláudio Sooma. Foucault e as relações de poder: o cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica. Revista Aulas, Campinas, n° 3, 2007. Disponível em: <www.unicamp.br/~aulas/pdf3/17.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2011.
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. S.l: S.n, S.d apud MARQUES, Arthur Antonio Moraes. O Conceito de poder em Foucault: algumas implicações para a teoria das organizações. CONVIBRA: Congresso Virtual Brasileiro de Administração, 3., 2006, s.l. Disponível em: <www.convibra.com.br/2006/artigos/74_pdf.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2011.
MARQUES, Arthur Antonio Moraes. O Conceito de poder em Foucault: algumas implicações para a teoria das organizações. CONVIBRA: Congresso Virtual Brasileiro de Administração, 3., 2006, s.l. Disponível em: <www.convibra.com.br/2006/artigos/74_pdf.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2011.
SILVA, José Cláudio Sooma. Foucault e as relações de poder: o cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica. Revista Aulas, Campinas, n° 3, 2007. Disponível em: <www.unicamp.br/~aulas/pdf3/17.pdf Acesso em: 29 nov. 2011.
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Rafael, o seu artigo ficou interessante, mas uma questão: para Foucault essa ‘nova economia do poder’ é um instrumento apenas do capitalismo? o que pensa a respeito?