Harley Carlos de Carvalho Lima
Introdução
É pertinente em nossos estudos tentarmos compreender se há uma possibilidade de um pensamento metafísico na modernidade. Discutiremos a filosofia de dois grandes nomes deste período: René Descartes e David Hume. A proposta é abordar, nesta discussão, a possibilidade de se ter uma metafisica no pensamento filosófico da modernidade, fazendo uma contraposição destes dois nomes da filosofia.
No pensamento de René Descartes, a tentativa de se ter uma metafísica parte da concepção de ideia. É certo que, para Descartes, existem três tipos de ideias: as inatas, adventícias e factícias. Com isso, fica visível que toda a filosofia cartesiana parte do pressuposto de ideia.
Com a descoberta do cogito (Cogito, ergo sun), que só foi possível graças ao método formulado por Descartes, existe uma pretensão de passar da certeza- das ideias- para a verdade. A descoberta do cogito não é nada mais que uma filosofia voltada ao sujeito, voltada para a subjetividade. O “eu” para Descartes está no fato de eu mesmo ser uma substância que tenho por essência ou natureza o pensamento. É o que podemos ver em seus escritos “(…) então, já sei com certeza que eu sou, (…) uma coisa que pensa. (…) uma coisa que dúvida, que concebe, que afirma, que nega, (…) que imagina também e que sente”. (DESCARTES, 1999. pág. 262). Neste pensamento filosófico fica a aporia de como pensar Deus. Onde o que prevalece é o sujeito cujo pensamento está voltado para a subjetividade.
Como vimos anteriormente, para Descartes existem em nós três níveis de ideias. Mas aqui abordaremos as consideradas ideias inatas que, por sua vez, são claras e distintas. É bom ressaltar que na metafísica cartesiana a ideia de Deus é considerada fonte das ideias e garantia da evidência. É Deus quem garante a veracidade e a existência das ideias que se pode conceber, podendo afirmar que as mesmas são claras e distintas, são verdadeiras. Mas, por outro lado, “(…) Pode ser que existam (…) pessoas que acharão melhor negar a existência de um Deus tão poderoso a crer que todas as outras coisas [ideias] são duvidosas”. (DESCARTES. 1999 pág. 253).
Essa tentativa de falar de Deus nasce na Terceira Meditação da obra Meditações Metafisicas de René Descartes. Nesta obra, os seus escritos apontam para um paradoxo acerca da existência de Deus. Em um lado está a ideia de que nenhum poder “conseguiria fazer com que eu não fosse nada enquanto eu pensar ser alguma coisa” (PASCAL. 1999, pág. 55). E do outro, todas as vezes que a ideia/opinião de Deus apresenta ao meu pensamento sou obrigado a confirmar que o mesmo existe, mesmo sendo ele um enganador.
Contudo, faz muito tempo que conservo em meu espírito a opinião de que existe um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Mas quem me poderá garantir que esse Deus não haja feito com que não exista terra alguma, céu algum, corpo extenso algum, figura alguma, (DESCARTES. 1999 pág. 253).
O filósofo, para tentar comprovar a existência de Deus e resolver esta aporia existente em seu pensamento filosófico, apoia-se na evidência de que nada me pode fazer duvidar. E de que o mesmo (Deus) não é um ser enganador. Em Descartes, a veracidade metafísica é toda fundamentada na razão. Só concebo uma ideia de Deus e sei que o mesmo não é um ser enganador pela razão, tendo em vista que o que em mim existe de obscuro e confuso é graças à nossa imperfeição. É pertinente observarmos que na filosofia cartesiana é impossível chegar a uma compreensão de Deus, somente é possível atingi-lo com o pensamento. O finito não poderia compreender o infinito.
Na tentativa de elaborar um pensamento metafísico, Descartes aponta três provas, sendo que a 1ª está no fato de existir em mim a ideia do perfeito. Toda ideia é representação de algo, por isso não pode ser considerada falsa. Existe, aqui, a intenção de responder a existência de Deus pela causalidade. Nesta teoria, o efeito deve estar contido na causa, “(…) a realidade da causa deve estar contida ou superior à do efeito (…)”. (PASCAL. 1999. pág. 62). Por eu ser uma substância infinita não posso ser a causa ou o efeito de uma substância infinita.
A segunda prova está na minha existência, na medida em que tenho a ideia de perfeito. Poderíamos aqui questionar qual seria a causa de nós mesmo (enquanto espírito), mas fica a querela de como um espírito criador perfeito não daria a ele mesmo a perfeição? “Um espírito que tem a ideia do perfeito poderia ter se criado sem dar a si mesmo todas as perfeiçoes de que tem a ideia?”. (PASCAL. 1999. pág. 65). A ideia de perfeito que existe em mim só pode estar no fato de um ser mais perfeito que eu mesmo ter me criado.
Por fim, a terceira prova está na essência da ideia do perfeito. Esta prova não está interligada com a minha existência ou a existência de uma ideia em mim, mas esta fundamentada na essência de Deus. Se na ideia que tenho de Deus percebo que existe propriedades que concebo verdadeiras, saberei que as mesmas provem de sua essência. A existência de um ser soberano não pode aqui ser separada da sua essência. Se o ser soberano tem a perfeição na sua existência saberei, sem nenhuma dúvida, que esta mesma perfeição parte de sua essência.
A partir desta explanação da metafísica cartesiana, observamos que Descartes, ao descobrir o Cogito com seu método (dúvida hiperbólica), depara com uma aporia em seu pensamento. A aposta no cogito, a aposta na realidade subjetiva, na metafísica da subjetividade faz com que o seu pensamento não abra espaço para a existência de Deus. Deus só existe pela formulação, ou pela minha concepção (ideia). Desta forma, Descartes admite a ideia de Deus como uma ideia inata, aquela ideia que já está contida em meu pensamento e que não é necessário passar pelo método da dúvida hiperbólica.
De outro lado está David Hume, filósofo empirista considerado, por muitos, o maior cético da história da filosofia. O seu pensamento filosófico está baseado na moral como entendimento, aprimoramento e costumes, estando sua filosofia fundamentada na experiência sensível. A metafísica é, para ele, uma mera filosofia. Podemos dizer que a metafísica, no pensamento de Hume, ultrapassa os limites da razão. A verdadeira metafísica está no raciocínio exato e justo. Só se é permitido conceber a existência de um ser infinito e soberano através de um pensamento, um raciocínio exato, preciso e justo. Tendo em vista que este raciocínio exato e justo se pauta nos pensamentos, nas ideias e nas percepções.
Este raciocínio da natureza humana que Hume aponta para uma verdadeira filosofia é de onde provêm todas as ideias simples. Isto é o que permite a relação de criador e criatura. Evidenciando nesta relação o fato da semelhança se encontra a justificativa pela comparação do belo-Deus. A ideia de beleza está ligada com a ideia de Deus. A relação criador/criatura passa pela contiguidade e, por fim, pelo processo de causa- efeito, pela experiência. Aqui acontece, sem dúvida, o principio da associação das ideias. É pertinente ressaltar que, com o seu modo de pensar (empirismo), Hume descarta a possibilidade de se ter ideias inatas, pois as ideias que concebemos são provenientes das nossas impressões, nossas experiências.
É certo que Hume não tem interesse pela religião, pelo fato de, em seu pensamento, a religião não ter fundamento racional nem fundamento moral, tendo somente um fundamento instintivo. A religião surgiu do receio da morte, da preocupação com uma existência futura. Na filosofia de Hume, o que podemos fazer é apenas pensar como admissível a relação com a inteligência, no que diz respeito à causa do universo. Mas dessa relação não se retira nada de correto.
Para discorrer de uma possível existência de Deus, Hume escreve a obra intitulada Diálogos sobre a religião natural. Nesta obra, o filosofo aponta para dois argumentos, sendo um a posteriori e um apriori.
Considere o mundo, contemple o todo e cada uma de suas partes, e você descobrirá que é somente uma grande máquina, subdividida em um número infinito de máquinas menores, que por sua vez, se subdividem num grau que ultrapassa o que os sentidos e as faculdades humanas podem observar e explicar. (SMITH. 2006. pág. 277).
Neste argumento a posteriori apresentado por Hume, podemos provar “(…) ao mesmo tempo a existência de uma divindade e sua semelhança com a mente e inteligência humana”. (SMITH. 2006. pág. 278). Deus aqui é uma divindade semelhante à mente humana. Com isso,
(…) uma vez que, portanto, os efeitos se assemelham entre si, somos levados a inferir, por todas as regras da analogia, que as causas também são semelhantes o que o Autor da natureza é até certo grau semelhante à mente humana, ainda que tenha faculdades muito mais externas, proporcionais à grandeza da obra que executou. (SMITH. 2006. pág. 277-278)
A existência deste mundo, em uma analogia com uma máquina subdividida em um número infinito de máquinas, é uma forma que Hume encontra para dizer que Deus, ou a concepção de Deus, está no mesmo patamar que o entendimento humano. E o que passa pelo entendimento humano é fruto da experiência. Smith (2006), afirma que somente a experiência do sujeito pode indicar a veracidade ou a causa de qualquer fenômeno. “O que quer que exista deve ter uma causa ou razão para sua existência, sendo absolutamente impossível para qualquer coisas produzir-se a si mesma ou ser a causa de sua própria existência”. (SMITH, 2006. pág.190).
Outro argumento que Hume usa é o fato a priori “(…) podemos provar a infinidade dos atributos divinos, (…). pois como pode um efeito, que, ou é finito, ou, tanto quanto sabemos, pode ser assim, como pode esse efeito, digo, provar uma causa infinita?” (SMITH. 2006 pág.289). Neste argumento a priori, Hume volta a teoria do Desígnio que tem como ideia central a experiência, que em nossa razão são bem evidentes e entendidas. E que não surgem por acaso, mas como resultado de um desígnio consciente da parte de um criador dotado de inteligência.
Tendo em vista que David Hume é um pensador de atitudes agnósticas, deparamos com a necessidade de se encontrar uma metafísica baseada no nada. Uma metafísica baseada no ceticismo, na experiência. E, por fim, afirmarmos que exista um Deus. Em David Hume acontece a grande crise da metafísica.
(…) devemos, portanto, recorrer a um Ser necessariamente existente, que tem em si mesmo a razão de sua existência e que é impossível supor que não exista sem uma manifesta contradição. Consequentemente, existe esse Ser, isto é, existe um Deus. (SMITH. 2006. pág. 290-291)
Portanto, ao contrapormos o pensamento destes dois celebres filósofos, percebemos que falar de metafísica na modernidade é bem difícil, pelo fato de René Descartes apostar em uma metafísica da subjetividade, não dando espaço, em seu filosofar, para a existência de um Deus que, simplesmente, não esteja na ideia do sujeito. Por outro lado, Hume, com a impossibilidade de se ter uma metafísica pelo fato de a ideia ter que provir da experiência, nega, assim, uma metafísica. Como formular a ideia de um ser soberano sendo que a ideia tem que passar pelo fato da experiência? Em Hume a metafísica esta em crise, é pura ignorância. Por isso aqui podemos concluir que na modernidade, observando o pensamento destes dois filósofos, é impossível falar de uma metafísica no sentido teológico e ontológico. É impossível falar de uma metafísica como na escolástica, onde a metafísica está voltada para u discurso teológico e ontológico.
Referências
DESCARTES, René. Meditações Metafisicas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores)
PASCAL, Georges. Descartes. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
SMITH, Plínio Junqueira. Dez provas da existência de Deus. São Paulo: Alameda, 2006.