Daniel Fernandes Moreira
Bem-aventurado silêncio. Feliz o homem que nada sabe e nada quer. (Angelus Silesius)
1 Introdução
Muitos foram as preocupações que surgiram durante a história da filosofia às quais os filósofos dedicaram o árduo trabalho buscando encontrar razões ou soluções para os problemas delas sugeridos. Basta relembrarmos dos primeiros filósofos gregos, como, por exemplo, Tales de Mileto, que dedicaram tempos e mais tempos para tentarem descobrir de que o mundo é formado, ou seja, qual o primeiro princípio de todas as coisas. Um afirmava que era a água, outro que era o fogo, ou então que tudo era formado pelos quatro elementos, terra, agua, ar, fogo, que pelo amor se uniam e pelo ódio se separavam. Com o passar dos tempos os questionamentos sobre a origem do mundo foram dando espaço para outros questionamentos e necessidades, como, por exemplo, a necessidade de se afirmar um mundo supra-sensível, como fez Platão; a necessidade de se afirmar um conhecimento verdadeiro, como em Descartes, Hume e Kant. Por fim o questionamento que vem tomando cada dia mais o espaço na discussão filosófica é a linguagem: sua possibilidade, seus alcances e seus limites. Visto que, como nos afirma Lima Vaz ao descrever a categoria de subjetividade, ou seja, o relacionamento entre seres humanos, a linguagem é a mediadora dessa relação, parece-nos bastante pertinente a discussão de tal capacidade humana. Nesta perspectiva do estudo filosófico sobre a linguagem, um dos grandes nomes é Ludwig Wittgenstein.
Autor que marca uma grande reviravolta na discussão sobre linguagem, Wittgenstein em princípio não era estudante de filosofia, mas sim se interessava por questões das chamadas ciências exatas, como é o caso da matemática e da física. Há relatos de que fora autor de um projeto de motor de um avião que anos depois foi construído e funcionou perfeitamente bem. Porém, “pouco a pouco, seu interesse desviou-se para a matemática pura e desta, finalmente, para a Filosofia da Matemática” (STEGMÜLLER, 1977, p. 401). A partir daí nosso filósofo entra em contato com a filosofia de Frege e Russel e que serão os grandes influenciadores da sua primeira fase de pensamento que é coroada com o famoso Tractatus logico-philosophicus.
Nesta obra Wittgenstein defenderá que a linguagem é o espelho do mundo e, portanto, se não se conhece a linguagem, não se conhece o mundo e vice e versa: sendo assim, temos um paralelismo entre mundo e linguagem. O paralelismo que encontramos entre o mundo e a linguagem, de forma bastante resumida será a relação entre fatos e nomes, objetos e proposições, as quais podemos discorrer linguisticamente o quanto for necessário. Há ainda realidades das quais podemos até mesmo falar, mas não com tanta segurança e realidades que não podemos postular através da linguagem de forma alguma. A estas realidades denominamos místico. Adriano Oliveira assim resume esta obra:
A filosofia tractatiana atribui à linguagem um estatuto original no sentido de que ela é, simultaneamente, a forma de expressão do conhecimento e também um tipo de modelação da realidade. É a partir da crítica da linguagem que Wittgenstein realiza o objetivo principal de sua obra, que se resume na determinação dos limites claros e precisos daquilo que pode ser dito. […] Contudo, ele reconhece a existência de algo que, ultrapassando os confins da linguagem e do mundo, revela-se como horizonte de sentido para a vida. Esse algo é o místico. (OLIVEIRA, 2009, f. 12)
O presente artigo, portanto, tem como objetivo abordar o questionamento daquilo que é inefável para Wittgenstein, ou seja, o místico, tendo como base a discussão lógico-filosófica presente no Tractatus.
2 Desvelando o conceito de místico na tradição e no Tractaus logico-philosophicus
Afinal de contas, o que seria então este místico de que tanto ouvimos falar e que é o desejo deste nosso trabalho? Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss mística é:
1-conhecimento ou estudo do misticismo 2-tendência para a vida religiosa e contemplativa, com ocupação contínua da mente nas doutrinas e práticas religiosas; misticismo 3-fervor religioso que faz o místico alcançar um estado de êxtase e paixão, cujo objetivo é a divindade 4– p.ext. conteúdo de uma ideia, causa, instituição etc., ou a atmosfera ou aura de perfeição, verdade, excelência incontestável que as cerca, despertando nas pessoas respeito, adesão apaixonada, devotamento sectarismo etc. (HOUAISS, 2001, p. 1935).
Vemos, portanto, que a palavra mística, ou então, místico, é carregada de um sentido teológico de busca de um ser transcendente ao qual se deve entregar por completo em uma espécie de êxtase que envolve o ser como um todo. Dessa forma, ao observarmos a história do catolicismo, assim como em outras religiões orientais, percebemos a existência de grandes homens e mulheres que fizeram experiências definitivas de encontro com Transcendente e, sendo chamadas, por isso, de mestres da mística, como é o caso de João da Cruz, de Tereza, Buda e tantos outros.
Etimologicamente, o termo, que vemos aparecer pela primeira vez nos escritos de Ésquilo, como caminho de encontro e contemplação, em uma experiência divina,
provém do adjetivo grego musticoz, relacionado com os verbos muw (fechar os olhos e a bôca para penetrar num mistério sem divulga-lo) e muew (iniciar-se nos mistérios); e com os substantivos musthrion (quase sempre plural: musthria = cultos mistéricos; em sentido profano: segredo) e musthz (aquêle que é iniciado nos mistérios), daí significar, mais ou menos “algo concernente aos mistérios”. (WULF, 1970, p. 322-323)
Porém, com Wittgenstein este termo saíra de um campo puramente teológico e passará, também, para um caminho de impossibilidade de linguagem:
Entretanto, é curioso comprovar que, na opinião de Wittigenstein, […] o inexpressável, o inexplicável, se “mostra a si mesmo” e pode ser tanto aquilo de que se tem uma vivência imediata e intraduzível a uma linguagem intersubjetiva […], como aquilo que resulta […] da conclusão de que elas também carecem de sentido e constituem, em suma, essa “escada” que “há de ser jogada fora depois de tê-la subido” (Tractaus, 6.54). O místico apareceria, então, sobre duas formas: ou antes da linguagem ideal concreta, ou depois dela […].[1] (FERRATER MORA, 1994, p. 2420 – tradução nossa).
Segundo Wittgenstein o ponto mais importante no Tractatus não é a crítica da linguagem, não é a relação entre linguagem e mundo, não é a “escada lógica”, “na realidade, […] o sentido do livro é um sentido ético” (WITTGENSTEIN, 2006, p. 318), porém, o próprio Wittgenstein (1968, 6.42-6.421, p. 126-127) afirma que “[…] não pode haver proposições da ética. Proposições não podem exprimir nada além. É claro que a ética não se deixa exprimir. A ética é transcendental. (Ética e estética são um só)”. Portanto aquilo que é mais importante é impossível de ser dito. Talvez seja essa a crítica feita à linguagem através da própria linguagem, a saber, que ela não é capaz de exprimir tudo. Assim como a ética, a vontade e a morte não serão contempladas pela linguagem. Ora, para que a ciência exista é preciso da linguagem e, uma vez que ela é limitada, assim também o conhecimento científico é limitado, principalmente naquilo que diz respeito aos problemas vitais do homem: “Sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não teriam sido tocados. Sem dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e esta é precisamente a resposta.” (WITTGENSTEIN, 1968, 6.52, p. 128).
Porém nosso questionamento inicial não era sobre o limite da linguagem ou da ciência, muito menos da ética, da vontade ou mesmo da morte, era sobre o místico na filosofia proveniente do Tractatus. Por que então a descrição da limitação da linguagem e da ciência, no que diz respeito à ética, à vontade e à morte? Porque estas realidades vão nos mostrar, segundo o filósofo, que “Existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico” (WITTGESTEIN, 1968, 6.522, p. 129).
Considerações finais
A partir de tal investigação, podemos concluir que o místico, na obra Tractatus logico-philosophicos[2], é o inefável, o indizível. Porém, ao afirmar o místico dessa forma, nosso autor não nos estava chamando a atenção para não tentarmos conceitua-lo, uma vez que “o método correto em filosofia seria propriamente: nada dizer a não ser o que pode ser dito” (WITTGENSTEIN, 1968, 6.53, p. 129)? Talvez o nosso árduo e pesaroso trabalho esteja fadado ao fracasso desde sua origem; talvez o tempo gasto para a elaboração deste artigo tenha sido desperdiçado, mas uma conclusão não nos pode ser tirada e não pode deixar de ser creditado ao nosso esforço, a saber: “O que não se pode falar, deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 1968, 7, p. 129).
Referências
MISTICA, In: HOUAIS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
MÍSTICA. In: FERRATER MORA, José. Diccionario de filosofía. Barcelona: Editora Ariel, 1994. v. 3.
OLIVEIRA, Adriano J. de. A sublimidade do inefável: o místico no Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, 2009. Disponível em:< http://www.faculdadejesuita.edu.br/documentos/011111-adriano%20jose%20de%20oliveira.pdf >. Acesso em: 10 nov. 2012.
STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. São Paulo: EPU, 1977.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Carta a Ludwig von Ficker. In REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: de Nietzsche à escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006. p. 318. v. 6.
______. Tractatus logico-philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Editora Nacional, 1968.
WULF, F. Mística. In: FRIES, Heinrich. Dicionário de Teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. São Paulo: Loyola, 1970. p. 322 – 334.
[1] Sin embargo es curioso comprobar que, en la opinión de Wittgenstein, […] lo inexpresable si “muestra a sí mismo” y puede ser tanto aquello de que se tiene una vivencia inmediata e intraducible a un lenguaje intersubjetivo […], como aquello que resulta […] de la conclusión de que ellas también carecen de sentido y constituyen, a lo sumo, esa “escalera” que “hay que arrojar tras haberla escalado” (cfr. Tractatus, 6.54) . Lo místico aparecería entonces bajo dos formas: o antes del lenguaje ideal concreto o después de él […]. (FERRATER MORA, 1994, p. 2420)
[2] É pertinente deixar claro que nossa proposta era investigar o místico na primeira fase do pensamento de Wittgenstein, uma vez que na sua segunda fase, coroada pela obra Investigações filosóficas, a discussão sobre o místico pode ser apresentada em um novo caminho, ou até mesmo uma continuação do já traçado pelo Tractatus, porém tal empreitada pode ser um caminho para outros textos e não foi o caminho proposto para este.