Por Allan Júnio Ferreira
“Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror.” Charles Chaplin
O filósofo francês, Gilles Lipovetsky nasceu em 1944 e se destaca como um crítico da sociedade hipermoderna, termo este que ele mesmo cunhou para se referir à sociedade contemporânea. Ao estudarmos os filósofos contemporâneos vemos vários nomes que colaboraram para o pensar da sociedade e Gilles Lipovetsky é um deles. Nosso autor aborda os temas do consumismo, do narcisismo hipermoderno e do humor em uma de suas obras mais famosas “A Era do Vazio”, nesta obra Lipovetsky irá criticar a sociedade que está imersa num vazio absoluto e que é dominada pela indiferença, pelo narcisismo nas relações e pelo consumismo exagerado.
Ainda nessa obra, especificamente no quinto capítulo, Lipovetsky introduzirá o tema do humor na sociedade hipermoderna dizendo que tudo está repleto de humor, desde os meios de comunicação, passando pela academia até a cultura geral. Como pensar o humor na sociedade hipermoderna? Em tempos de proliferação do humor, especialmente em talk shows, em canais de vídeo e nas redes sociais, o humor parece ser um novo refúgio para uma sociedade deprimida.
Nosso artigo pretenderá abordar o tema do fenômeno humorístico na sociedade hipermoderna baseando-se no pensamento de Gilles Lipovetsky, a partir do quinto capítulo da obra A Era do Vazio.
1 – Do humor crítico ao deboche
O tema do humor, do cômico e do riso não é um tema que surgiu na hipermodernidade. Desde o período clássico o humor já era utilizado como uma forma de dizer sem se mostrar. O humor também fazia parte da sociedade antiga como um elemento essencial nos banquetes e festas. Desde a Idade Média o humor (piadas, blasfêmias, injúrias) foi utilizado para criticar às instituições dominantes da sociedade.
Na Idade Média, a cultura cômica popular encontra-se profundamente ligada às festas, aos divertimentos do tipo carnavalesco que, diga-se de passagem, chegavam a ocupar um total de três meses por ano. Neste contexto o cômico se encontra unificado pela categoria de ‘realismo grotesco’, com base no princípio de rebaixamento do sublime, do poder e do sagrado por meio de imagens hipertrofiadas da vida material e corporal. (LIPOVETSKY, 2005.p.113).
Nesse sentido o carnaval da Idade Média até o renascimento fazia uma grande crítica, sobretudo à Igreja católica. Os medievais dançavam, cantavam e faziam paródias dos cultos e dogmas religiosos, uma verdadeira profanação das regras religiosas como uma forma de protesto e crítica aos abusos daquela instituição. Apesar de não se ter ainda uma crítica aberta e clara, o humor nesse período demostrava uma insatisfação em relação aos poderes da sociedade.
Podemos pensar ainda o humor no início do Renascimento e posteriormente no seio da modernidade. Nesses períodos o humor já não tem a característica grosseira, ele é contido e escondido nas formas de ironias e sátiras. Um exemplo disso é a obra mais famosa do Renascimento “O Elogio da Loucura” de Erasmo de Rotterdam, que utilizou-se da ironia e da sátira para questionar os poderes civis e religiosos. A “ironia humorística” serve nesse sentido como uma forma de crítica velada, mas ao mesmo tempo destruidora. Pensando ainda na modernidade, agora em seu período mais profundo, o riso e o humor foram sinais de deselegância e inconveniência, um comportamento que não era aceito nas rodas sociais. Diz-nos LIPOVETSKY (2005): “O cômico deixou de ser simbólico; ele se torna crítico na comédia clássica, na sátira, na fábula, na caricatura, no teatro de revista ou no vaudeville.”
Vimos até aqui que o humor sempre esteve presente de uma forma ou de outra na vida da sociedade, mas esse humor possuía uma forte vertente crítica em relação às instituições da época, não queremos afirmar que na hipermodernidade isso desapareceu completamente, mas que houve uma diminuição considerável desse aspecto em nosso tempo.
Como pensar esse humor crítico em nosso tempo? Houve uma verdadeira passagem da crítica ao deboche. O humor já não serve de base para contestações e protestos pacíficos visando uma transformação, mas a crítica se transformou em deboche. Ri-se de tudo pelo simples prazer, conta-se piadas de povos, pessoas e religiões, mas pelo simples gosto de ofender sem se sentir culpado. O deboche hipermoderno é o lúdico por excelência, as pessoas se jogam no mar do lúdico e não do crítico, esse tipo de humor não acrescenta, apenas distrai.
1. O humor midiático
Quando falamos de mídia logo nos vêm à mente a grande rede televisiva e radiada e também a rede mundial de computadores, a internet. É nesse campo que o humor lúdico se alastra com mais rapidez e se propaga na sociedade humorística. Crescem os números dos chamados talk shows, uma espécie de entrevista humorística. Esses talk shows levam o público à uma compreensão errada do cômico quando, muitas vezes, desrespeitam seus convidados e apelam para o sensacionalismo, visando a audiência. A guerra pela audiência na tv aberta é surpreendente, vários programas do mesmo estilo disputando a preferência de um público que se deleita, em muitos casos, com situações constrangedoras e apelativas de outras pessoas. Esse humor midiático nada tem de crítico, ao contrário, iludem e hipnotizam a massa que assiste, como nos diz LIPOVETSKY (2005) “A denúncia escarnecedora correlativa de uma sociedade baseada em valores reconhecidos foi substituída por um humor positivo e desenvolto, um cômico adolescente à base de uma extravagância gratuita e sem pretensões”. Além desses programas de entrevista, há também os programas humorísticos que perdem uma boa oportunidade de retomar aquele humor crítico do início da modernidade, mas, infelizmente, caem no simples deboche e no lúdico.
Continuando a nossa reflexão sobre o humor hipermoderno não podemos deixar de mencionar o quanto a internet tem grande influência na vida da sociedade. Já não somos capazes de nos imaginar sem ela, a internet parece fazer parte da estrutura do ser humano. Diante desta grande importância, vemos que a internet tem uma gama de informações que podem ser utilizadas tanto para fomentar o espírito crítico, quanto para destruí-lo e é na internet que encontramos os famosos e populares canais de vídeos. Esses canais reproduzem vídeos de cenas do cotidiano, da vida de uma classe social, de uma religião ou qualquer outro assunto, o que importa é debochar (no sentido mais original da palavra). Despidos do senso crítico, alguns desses canais, desconsideram a realidade e o jeito próprio de suas “vítimas” causando várias polêmicas envolvendo principalmente a religião. Isso só acontece porque o lúdico, o deboche, o humor pop tomou o lugar daquele humor original. Diante dessas polêmicas levantam-se a questão, há um limite para o humor? Não pretenderemos responder a essa questão, mas sim deixa-la para reflexão.
2. A publicidade humorística e a moda lúdica
Gilles Lipovetsky nos ajuda a compreender o quanto o humor está impregnado em diversas áreas da sociedade. Nesse tópico veremos como a publicidade carrega o humor em si. O tema da publicidade humorística está intimamente ligado ao tema do consumismo hipermoderno. Para atrair o consumidor e seduzi-lo a comprar, a publicidade utiliza de diversos meios, um deles é o humor. Quem nunca sentiu vontade de comprar algum produto só porque a propaganda foi boa e engraçada? Vários são os exemplos, propagandas com pessoas felizes e sorridentes, mundos fantásticos que são possíveis só em sonho, chamadas engraçadas e rimas divertidas. Essa é técnica da metapublicidade.
Consumiremos a alegria vendida nas propagandas para nos satisfazer. O riso midiático, reflexo e influência de nosso cotidiano, como afirma Lipovetski, promete um mundo divertido, sem preocupações e sem sofrimento: viveremos sorridentes como em um comercial de margarina, buscando a perfeição de uma propaganda de shampoo e nos divertindo como em um anúncio de cerveja. (GOMES, 2012. p. 14);
A publicidade está aí para satisfazer as nossas carências, para suprir as nossas necessidades e desejos e não importa como e nem com que meios fará isso, ela nos tentará sempre. A publicidade existe e por um lado precisamos dela, mas quando a mesma utiliza de artimanhas para nos prender no consumismo a publicidade destoa do seu verdadeiro papel que é o de oferecer sem convencer. Lipovetsky vê na publicidade uma espécie de propaganda não ideológica, para o filósofo a ideologia visa o universal e a verdade, enquanto o humor publicitário é uma depreciação lúdica.
É certo que o humor publicitário visará sempre o consumo. Esse tipo de humor é vazio, não ideológico, como afirma LIPOVETSKY (2005) “o discurso demonstrativo tedioso se apaga, resta apenas um detalhe cintilante, o nome da marca: o essencial”.
Aos moldes da publicidade, a moda também está repleta de humor. As revistas e os manequins mostram claramente o apelo humorístico. O padrão perfeito para ser aceito na sociedade, a magreza é sinônimo de beleza. Nas revistas estão modelos magérrimas, os títulos são provocativos como: “Não viva sem isto ou aquilo”, “viva intensamente utilizando o nosso produto”, “ a moda é ser assim”.
As roupas e as marcas são mais importantes do que o caráter das pessoas, os produtos a cada dia se renovam e se enfeitam para atrair o público alvo, bonés, relógios, colares, brincos, uma diversidade de apetrechos para fomentar a indústria. Junto com o tema da moda, podemos pensar no que o filósofo chama de narcisismo contemporâneo, a moda permite que esse narcisismo floresça quando a mesma impõe o jeito de ser das pessoas. Esse narcisismo, um olhar para si mesmo, seu auto admirar, está muito presente na sociedade hipermoderna.
A moda se apresenta como uma paródia de costumes e fatos que até então não eram tema para ela. Lipovetsky cita alguns exemplos, dentre eles: a trancinha, que em alguns lugares é um aspecto cultural, de crença e culto, virou moda e agora beira o exibicionismo, do mesmo modo podemos falar do jeans, criado como um modelo para o simples trabalho, hoje se difundiu e ganhou vários aspectos. “a moda macaqueia o mundo profissional e ao fazê-lo adota um estilo explicitamente paródico.” (LIPOVETSKY, 2005. p. 127).
3 Considerações Finais
Vimos que o processo humorístico já está entranhado na sociedade hipermoderna e que dificilmente será abandonado. Gilles Lipovetsky nos ajuda a compreender, muito detalhadamente, como esse processo leva às pessoas a um individualismo e ao vazio contemporâneo.
Toda a reflexão do autor é esclarecedora, o riso tem uma história, da crítica ao deboche, do escárnio à ironia. Vivemos em uma sociedade que humoriza todas as situações da vida, ela ri de si mesma e dos outros. O humor hipermoderno parece ser uma resposta às próprias angústias e desafios da vida, uma fuga da realidade, rimos para mascarar a dor e o sofrimento. Somos provocados por Lipovetsky a termos um olhar crítico sobre a realidade que nos envolve. O humor não está presente só na mídia ou na publicidade, mas em todos os aspectos possíveis, até mesmo em artigos acadêmicos como esse, como nos diz Lipovetsky.
Referências Bibliográficas
GOMES, Mariana Andrade. A “sociedade humorística”: a ressignificação do riso na contemporaneidade. 5º CONNECO UFF 2012, Niterói, out. 2012. Disponível em: <http://www.coneco.uff.br/ocs/index.php/1/conecorio/paper/viewFile/284/14>. Acesso em: 02 abr.2014.
LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade humorística. In: ______. A Era do Vazio. Tradução Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Manole, 2005. p. 111-144