José Mário Santana Barbosa*
Resumo: Objetiva-se, por meio deste presente estudo, compreender melhor o pensamento de Gregório de Nissa a respeito do problema do mal. Dessa maneira, analisar-se-á a conjuntura histórico-filosófica em que o autor está inserido, isto é, a filosofia praticada pelos “padres capadócios”, quais sejam, Gregório Nazianzeno, Basílio e Gregório de Nissa, a partir de seus principais pensamentos. Após essa análise, adentraremos no ponto central do trabalho, isto é, a visão de Gregório de Nissa sobre o problema do mal em algumas de suas características, tais como sua origem e suas consequências. Além disso, buscar-se-á uma breve atualização desse tema em dois filósofos posteriores a Gregório (Agostinho e Tomás de Aquino), a fim de mostrar as consequências que o pensamento do bispo de Nissa trouxe para a Igreja e para a filosofia cristã medieval.
Palavras-chave: Mal. Pecado. Padres. Medieval. Deus.
INTRODUÇÃO
Um dos problemas filosóficos que ao longo dos anos tomou mais espaço no pensamento humano (e o faz até hoje) é o “problema do mal”. De fato, como entender a origem de algo que é tão nocivo ao homem e que, mesmo assim, convive com ele, indissociavelmente? Mais do que isso, como acreditar na presença de uma divindade, tal como o Deus proposto pelo cristianismo, que, ao mesmo tempo em que é misericórdia e compaixão, permite que seus filhos sofram em suas vidas?
É nesse sentido que trabalharam muitos dos filósofos cristãos, dentre eles São Gregório de Nissa, um dos “padres capadócios” que exerceu uma importante influência em todo o pensamento cristão que o sucedeu. Portanto, o objetivo desse trabalho é, a partir da obra do autor e de comentadores de seu pensamento, entender melhor a origem do mal e as suas consequências para o homem, no ponto de vista de Gregório de Nissa.
1 OS PADRES CAPADÓCIOS
O contexto em que se insere o pensamento dos padres capadócios é bastante peculiar. A Igreja acabava de se reunir no Concílio de Nicéia (325), que fixou um credo para os fiéis, estabelecendo uma doutrina “fixa”. A partir de então, não se viu mais na filosofia cristã opiniões tão antagônicas como as que precederam esse evento, uma vez que, aquele que desejasse ter seu pensamento associado ao cristianismo, deveria concordar com um número mínimo de dogmas e crenças, dos quais não se poderia mais duvidar, sob pena de excomunhão (anátema).
Estritamente ligado à filosofia grega, o pensamento cristão surgiu nos primeiros séculos após a morte de Cristo utilizando uma grande parte da tradição helênica em suas obras, o que iria refletir também nas obras dos padres gregos e, mais especificamente em nosso caso, nos padres capadócios. Nesse sentido, grande influência, sem dúvidas, exerceu o pensamento de Platão, ainda que apareçam diversas interpretações do mesmo, refutando-o ou mesmo atualizando-o.
O primeiro padre capadócio que muito influenciou o pensamento de sua época foi Gregório Nazianzeno (329-340). Grande defensor e propagador do dogma cristão da Trindade, isto é, da existência de um só Deus, mas em três distintas pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo), Gregório busca em suas obras defender a fé cristã da tendência existente pela busca apenas pelo uso da razão, excluindo completamente o sentido “metafísico” da filosofia. Esse pensamento decorria da influência do arianismo que, em sua época, especialmente na pessoa de Eunômio, tinha muita força. Para o autor, o verdadeiro conhecimento passa sim pelo uso da razão, mas ele só é completo com o auxílio das Sagradas Escrituras, uma vez que, nelas, Deus nos dá a conhecer alguns de seus aspectos (já que, sozinhos, nunca poderemos conhecê-lo perfeitamente).
Outro grande pensador da época foi Basílio (330-379). Seu pensamento é marcado pela busca por uma valorização da cultura helênica, exortando os cristãos a tirarem o maior proveito possível das coisas boas nela existentes. Além disso, o autor discorda da ideia platônica, para quem o mundo deveria ser criado a partir de uma matéria “não-criada” e primitiva.
Irmão de Basílio, Gregório de Nissa (335-394) é considerado, dos três autores citados, o mais filósofo, por seu apreço ao uso da razão, ainda que sempre associada à fé. Bispo de Nissa, Gregório foi casado com Teosébia e teve filhos, de quem pouco se sabe. Para Gregório, o logos é a fonte da verdadeira filosofia. Além de sua exposição a respeito do problema do mal, como iremos tratar mais à frente, Gregório dedicou importantes páginas de sua obra a outros temas filosóficos importantes. Para ele, o homem é o vínculo, o “meio termo” entre os mundos visível (este que podemos perceber) e invisível (isto é, o mundo espiritual, eterno). Daqui, surge a ideia de alma e corpo que, para o autor, foram criados simultaneamente por Deus. Essa diferenciação por si só sugere a existência de um Deus, uma vez que, por meio das coisas que podemos conhecer (Deus permite ser conhecido por sua criação), chegamos mais próximos do conhecimento da realidade espiritual em que estamos mergulhados.
Temos um verbo (logos), isto é, uma expressão racional de nosso pensamento (nous). Por conseguinte, Deus deve ser concebido primeiramente como um Pensamento supremo, que gera um Verbo em que esse pensamento se exprime. Como se trata de um Verbo divino, não se deve concebê-lo instável e passageiro como o nosso, mas eternamente subsistente e vivendo uma vida própria. Já que vive, o Verbo também é dotado de vontade e, como é divina, essa vontade é, ao mesmo tempo, onipotente e totalmente boa. (GILSON, 1995, p. 70)
2 GREGÓRIO DE NISSA E O MAL
Uma vez que ocupou um destaque muito especial em toda a obra de Gregório de Nissa, o problema do mal é o ponto central desse estudo. De fato, para os padres capadócios e, entre eles, Gregório, o mal é causado unicamente pelo homem, em decorrência de seu livre arbítrio. “Capaz de decidir pelo bem ou pelo mal, o homem escolheu o mal. […] É nesse sentido que se pode dizer que, de certa maneira, o homem tornou-se o criador e o demiurgo do mal” (GILSON, 1995, p. 71).
Trata-se aqui, especialmente do mal em seus sentidos “metafísico” e “moral”. Desde os primórdios da atividade filosófica o homem tem se questionado a respeito do mal nesse aspecto, ou seja, em linhas gerais, a sua participação na ação e nas consequências do mal. Nas mais diversas culturas, esse é um tema que ganha grande importância e alcance.
O mal é o produto das ações humanas, e a injustiça e a opressão se convertem em seus expoentes radicais. Surge assim o problema da “maldade” como atributo humano, e às vezes, também divino. E com ele a consciência do pecado e da culpa e o anseio de justiça e perdão como sua contrapartida. O mal moral tem relação direta com o problema do sentido da vida e enseja consequências imediatas para a ética, a religião e a filosofia da história. (ESTRADA, 2004, p. 13)
Na visão da Igreja, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Para Gregório, à medida em que o homem peca, ele se torna “sujo”, “irreconhecível”, e se afasta dos projetos de Deus para sua vida. Sem o pecado original, o ser humano se reproduziria tal qual os espíritos celestes. A consequência desse erro é a morte, tida aqui, como o caminho necessário para que o homem retorne Àquele que o criou.
Nesse sentido adquire grande importância a ideia de salvação. Após afastar-se dos planos de seu Criador, o homem sente falta dessa “realidade espiritual” e busca recuperar a semelhança com ele, através do caminho da fé e da caridade (amor). Todo o sofrimento e mal-estar decorrentes do vazio dessa separação levam a um grande desejo do homem de reencontrar a Deus, e é isso que leva-o ao caminho da perfeição, deixando as “trevas”, para caminhar na “luz”.
Com efeito, do mesmo modo que, graças aos princípios luminosos de que é constituído, o olho participa da luz e, em virtude desse poder inato, atrai para si aquilo que tem a mesma natureza, assim também uma certa afinidade com o divino foi misturada à natureza humana para lhe inspirar, por meio dessa correspondência, o desejo de se aproximar do que lhe é aparentado (Discurso catequético). (GREGÓRIO DE NISSA apud LELOUP, 2003, p. 180)
Daqui infere-se a necessidade de ordenarmos nossos desejos, amando aquilo que realmente “é”, ou seja, Deus. Isso só ocorre à medida em que o homem entra em si mesmo, conhecendo-se e questionando-se. Só então ele pode trilhar o caminho que o leva ao Outro, ao conhecimento de Deus: “[…] o homem terá de avançar além da gnosis e alcançar a agape” (LELOUP, 2003, p. 189)
3 O MAL EM TOMÁS DE AQUINO
Após Gregório de Nissa, a Igreja continuou a pensar a respeito do problema do mal em muitos de seus filósofos. Certamente, os dois que mais se destacaram nesse sentido foram Agostinho e Tomás de Aquino. O primeiro, preocupado em eliminar de vez o maniqueísmo existente em seu tempo – que defendia a existência de um princípio criador para o bem e um para o mal –, é enfático ao declarar que o mal (especialmente o mal moral) presente no mundo é causa exclusiva do homem, através de seu pecado.
É nessa linha que Tomás de Aquino caminha, retomando e atualizando o pecado como “contrariedade à lei de Deus”. Assim, Deus dá ao homem a possibilidade de acolher o seu dom (em Jesus Cristo, pelo Espírito), ou não. Tudo depende de sua escolha. Quando o homem se distancia do projeto de Deus em seu pecado, perde a comunhão com Ele e causa desordens em seu meio que não podem, de maneira alguma, serem atribuídas ao Criador.
Como foi dito, duas coisas concorrem para a razão de pecado: o ato voluntário e a desordem que lhe advém de seu afastamento da lei divina. Destas duas coisas, uma se refere ao que peca, o qual tem em vista realizar em tal matéria tal ato voluntário. […] É por isso que a distinção dos pecados se faz da parte dos atos voluntários, mais do que da parte da desordem existente no pecado. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, v.4, q. 72, a.1)
Além disso, Tomás analisa outros itens a respeito do mal, dentre os quais: a gravidade dos pecados, suas causas (interior, exterior, ignorância…), sua essência, a ação do diabo (que eliminaria por completo a ideia da liberdade), o pecado original e a distinção entre pecado capital e pecado venial.
CONCLUSÃO
Após esse breve estudo, fica claro que a compreensão de Gregório de Nissa a respeito do problema do mal segue estritamente aquilo que a Igreja “pós-conciliar” acreditava e que, posteriormente seria confirmado pela obra de outros autores, como Agostinho e Tomás de Aquino. O mal, presente em todos os espaços em que há presença do homem, não é causado de maneira nenhuma pela ação de Deus (ou mesmo através da influência de um princípio do mal, como se acreditou por bastante tempo).
Ao contrário, o mal é causado tão somente pelo afastamento do homem do projeto que Deus escolheu para ele, isto é, a partir do pecado. Uma vez que se distanciou de Deus, o homem sofre as consequências de sua escolha, de onde lhe vem o sofrimento e a angústia. Tudo isso deve fomentar no homem um desejo sincero de retornar ao “convívio” com seu Criador e é esse caminho de salvação que o homem deve trilhar, buscando a recuperação de sua semelhança para com Deus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ESTRADA, Juan Antonio. A impossível teodiceia: a crise da fé em Deus e o problema do mal. Tradução de Jonas Pereira dos Santos. São Paulo: Paulinas, 2004.
GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LELOUP, Jean-Yves. Introdução aos “verdadeiros filósofos”. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2003.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Edição de Joaquim Pereira. São Paulo: Loyola, 2005.
* Bacharelando em Filosofia pela FAM.