Tiago da Silva Gomes
Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza. (DESCARTES, Meditações, II, 9)
Não se pode falar sobre Deus em Descartes sem antes falar do cogito, pois é a partir deste que todo o sistema cartesiano se desenvolve. O infinito em Descartes foi uma tentativa fracassada de saída do eu, pois todo itinerário de comprovação de Deus não passou de um mero exercício de afirmação do cogito. Deus e o cogito têm uma relação de dependência mútua num sentido existencial que se dá na atividade do próprio cogito.
A descoberta do cogito se deu através da dúvida metódica instaurada por Descartes ao se perceber envolto de conhecimentos incertos e errôneos. Através da dúvida ele começará todo o seu processo cognitivo a partir de idéias claras e distintas. Ele pretende dar um basta às antigas opiniões e alcançar um fundamento que lhe garanta evidência. É assim que ele descobrirá o cogito ao perceber que o ato de pensar é algo de mais evidente em sua existência e é através dessa sua faculdade que se reconhece como existente. Descartes faz coincidir a existência com o ato de pensar. Por isso, o pensamento será elevado no homem como a ação mais sublime e a algo que o especifica e lhe dá fundamento. O cogito fundamentará todo o estatuto do conhecimento enquanto realismo na busca de clareza e distinção.
O problema da existência de Deus será um dos passos em que Descartes envolverá o cogito. Ele pretende descobrir se Deus existe e se ele pode ser a causa do engano. É por meio do elemento “engano”, relacionado com o pensamento, que ele chega à comprovação de sua existência. Sobre o engano ele também pretende descobrir a sua origem, mas antes disso procurará uma saída do solipsismo recorrendo a algo fora de si que confirme ainda mais a atividade do cogito. O objeto de manipulação do cogito será Deus.
Através do argumento das idéias que todo o processo de descoberta de Deus a partir do cogito se desenvolverá. Existem no homem idéias inventadas, adventícias e inatas. As idéias inventadas e adventícias são algo comum ao homem, faz parte de suas fantasias e reproduções imaginativas. Já as que se encontram inatas são aquelas que permanecem no homem e o ultrapassam. São duas as idéias inatas que ele faz referência: a idéia de infinito e a idéia de perfeição. Com a idéia de infinito, Descartes chega à conclusão de que a idéia que ele tem de si, enquanto substância finita, não pode ser concebida por si só, é necessária a referência da idéia de algo infinito que seja exterior a ele. A idéia de infinitude precede a idéia de finitude, pois o finito não pode conceber o infinito. A idéia de finito implica a substância infinita. A idéia de perfeição passa a ser entendida também dessa forma dicotômica, na qual se afirma que o menos perfeito não pode chegar a conceber o mais perfeito, ou seja, a idéia inata que o homem tem de perfeição não pode ter origem em si mesmo, ser imperfeito, mas só fora de si e ainda em algo superior. Através do pensamento não se pode conceber algo superior ao que nele mesmo se concebe.
É por causa das carências do homem que Descartes afirmará a existência de Deus e o reconhecerá como detentor de tais atributos, perfeição e infinitude, e o responsável em tê-los colocado no homem. Isso quer dizer que se existe uma idéia em que o homem não é a causa eficiente, decorre que exista algo maior e exterior a ele que seja a causa eficiente, e esse algo só pode ser Deus. A existência de Deus é comprovada pela incapacidade cognitiva do homem em conceber os seus atributos, os quais são considerados idéias grandes e eminentes.
Em Deus, é necessário que sua essência coincida com sua existência. Se Deus é pensado como algo perfeito e infinito, se faz necessário que ele exista. A essência está para a existência, assim como o vale está para a montanha e como é da essência do triângulo que a soma de seus ângulos corresponda a dois ângulos retos. Esse argumento dá sustentabilidade ao conhecimento verdadeiro e garante a existência das coisas corpóreas.
Toda lógica cartesiana para a comprovação da existência de Deus se baseia no argumento ontológico de Anselmo usado para provar a priori a existência de Deus. Já o fato de Descartes fazer coincidir a essência de Deus com a existência, isso ele parece ter tirado do pensamento de Tomás que também afirma o mesmo sobre Deus.
Pode-se chegar à conclusão de que a tentativa de Descartes de procurar encontrar uma saída do subjetivismo provocado pelo cogito, não alcançou sucesso na busca de se recorrer a algo transcendente, pois o sujeito cartesiano é um sujeito fechado em si mesmo, que pensa a si mesmo e tudo faz submeter à supremacia do pensamento. É um afundamento no solipsismo exacerbado que exclui a possibilidade de relação fora do próprio eu. Deus é feito à sua imagem e semelhança.
Todos os mecanismos descritivos de comprovação da existência e superioridade de Deus nada mais passaram do que um fechamento e culto na Deusa-Razão. O Deus de Descartes é um objeto da res cogitans. É o pensamento enquanto atividade existencial do homem que fundamenta a existência de Deus. Descartes quis um novo fundamento para a razão; diferente do que a tradição pregava como fundamento (algo absoluto), ele traz como fundamento o próprio sujeito conhecedor. O conhecimento está no sujeito que percebe o objeto e não o objeto que se apresenta ao sujeito e se faz conhecer. A revolução cartesiana consiste em ter ele transferido o lugar da certeza original de Deus para o homem, para a razão humana. Parte-se, agora, da certeza de si próprio para a certeza de Deus e o teocentrismo medieval é ser substituído pelo antropocentrismo moderno.
Referências
DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Gindburg e Bento Prado Júnior. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990.