Maurício de Assis Reis
1. Introdução
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32)
Século XX: um século de profundas transformações no modo de vida do homem, século de contradições, onde o avanço tecnológico disputa espaço com os atos violentos praticados entre os homens. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawn, a chamada “Era das Catástrofes”. Parece que a humanidade nunca sofreu tamanha transformação, com a presença de tais elementos. Parece.
O fato é que, ao olhar atentamente para a história da humanidade, a convivência de violência e progresso a percorre como que sendo um seu elemento constitutivo. A palavra de Cristo, retirada de seu contexto bíblico, reflete o slogan dessa história: a verdade da Inquisição, a verdade das Cruzadas, a verdade dos colonizadores das Américas, a verdade de Hitler e do nazismo. Tantas foram as verdades quantos foram também os ideais de liberdade. A possibilidade da evolução na formação social da humanidade segue, pois, a necessidade dos sacrifícios daqueles que são tomados como empecilhos para a realização concreta da verdade, pois só através dela é que se poderia realizar a liberdade humana. Foi assim na dita sociedade esclarecida da França iluminista, ao depor e assassinar os nobres franceses, só para se dar um exemplo.
Se se reportar o tema ao debate filosófico, não é difícil de se perceber a pertinência da questão. O questionamento em torno da verdade e da liberdade se mostra de fundamental importância para os pensamentos em torno da metafísica e da ética, apoiadas, sem exceção, numa concepção gnosiológica.
A menção primeira ao século XX, apesar de tantos outros eventos catastróficos durante a história da humanidade é proposital: chama a atenção, ao pensar sobre este século, a obra dos frankfurtianos Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. A questão de urgência está em pensar sobre as razões de por que o mundo se encontra em tal situação de guerras, quando o estágio tecnológico se encontra tão avançado. Diante disso, chama a atenção o comprometimento filosófico sem deixar de lado o esforço em pensar as causas históricas da barbárie, que ora atinge os judeus, povo ao qual pertencem os autores.
A relação entre verdade e liberdade é então pensada pelos autores na busca por entender um caminho de violências existente na (de)-formação da sociedade histórica, processo esse que deixa marcas mais profundas que as violências vividas contemporaneamente.
2. Esclarecimento, domínio e desencantamento: a relação homem-natureza e a busca de um conceito de verdade
2.1 Surgimento da questão
O tema da reificação tem sua colocação inicial na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Entretanto, o surgimento do conceito a ser estudado não acontece logo de início. Isso só ocorre graças ao desenrolar de uma questão inicial da obra, questão essa que é menos teórica que existencial: trata-se do objetivo da obra, baseado na visão de uma situação social que urge ser denunciada e que se diz na tentativa de “descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (ADORNO, 1985: 11).
Com efeito, tal objetivo conduz os autores a voltarem à história a fim de interpretá-la por um viés diferenciado, ou seja, interpretá-la a partir de uma desconstrução do logos histórico a partir do qual tornar-se-ia possível apontar os desvios que impediram a humanidade de alcançar o dito “estado verdadeiramente humano”.
2.2 Método e verdade na relação com a natureza
A problemática da reificação não diz respeito, num primeiro momento, ao sujeito simplesmente. O primeiro momento do tema está em entender o que ocorre, em tempos imemoriais, na relação homem-natureza. Para tanto, a idéia dos frankfurtianos é de perceber no percurso histórico um processo de esclarecimento, processo esse que não estaria, então, reduzido ao período das Luzes (Séc. XVIII), mas que pertenceria à história da humanidade como um todo:
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo da calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber” (ADORNO, 1985: 19).
Com efeito, esta, que é a citação inaugural da Dialética do Esclarecimento, reporta à idéia de que o esclarecimento, como processo dado no percurso histórico, estaria, em seu início, fundado num medo diante das forças da natureza e numa tentativa, então, de livrar-se desses medos. A imaginação, como uma primeira forma de tentar se apropriar da verdade da natureza seria então substituída por algo mais seguro, o método, que possibilitaria, de fato, o poder sobre a verdade.
Contudo, é preciso dizer que os homens, nesse primeiro momento diante da natureza percebem já uma faceta da verdade: assumem a posição de seres inferiores diante das forças da natureza e ainda se percebem fundamentalmente diferentes dessa mesma natureza (DUARTE, 2003:42). A tentativa de responder a esse medo passa, num primeiro momento, pela interpretação dessas forças a partir de um ponto de vista mais fantástico, ou seja: surgem os mitos como uma forma de conhecimento apropriada para o momento histórico que era vivido pelos homens. É curioso observar que, nesse momento de verdade em que se constitui o mito, a relação homem-natureza ainda se mostra como uma relação, de certa forma, totalizante, pois envolve o homem como um todo, já que não é possível dizer claramente como tal conhecimento se forma, nem racional, nem psicologicamente: o que se poderia definir como verdade nesse momento histórico estaria fundado numa concepção de homem totalizante, uma forma de conhecimento que se daria vivencialmente, numa íntima relação entre homem e natureza sem a necessidade de se apoiar em formas a priori.
Com o advento do método científico, a verdade que se encontrava nos mitos perde espaço e é substituída por uma nova concepção de verdade que é alcançada pela utilização do método: já não há lugar para a interpretação da natureza, apenas para o desencanto e seu conseqüente domínio científico, que conduz os homens à sua almejada posição de poder: “Horkheimer e Adorno chamam a atenção para a superação do mito mediante a supressão de seu caráter plurívoco em benefício da univocidade das proposições científicas, a qual é apresentada como uma forma de reificação da consciência, já que é uma restrição a formas alternativas de cognição imposta pela necessidade de sobrevivência física, de autoconservação” (DUARTE, 2003: 44).
É interessante aqui recordar, para ilustrar a dimensão dessa opção pela autoconservação, os mitos gregos das escolhas dos grandes heróis. Um exemplo claro disso se encontra na Ilíada de Homero, quando Aquiles, alertado por sua mãe que poderia encontrar a glória, mas também a morte nas terras de Príamo, escolhe então enfrentar seu destino a fim de se tornar imortal nas palavras do poeta grego. A escolha pela autoconservação reflete, pois, a mesma idéia, apenas no sentido contrário à escolha da Aquiles: o que está em jogo não é a imortalidade na memória histórica, mas a perspectiva de alcançar a felicidade ou se esforçar em alcançar o maior tempo possível numa vida de sacrifícios intermináveis.
A questão que importa para a reflexão sobre o tema proposto aqui é que a busca da verdade impõe certos caminhos históricos para a humanidade. Tais caminhos se iniciam pela aceitação do método científico de proposições unívocas e caminhos seguros, onde a interpretação perde seu espaço, constituindo a primeira forma da reificação. Esse primeiro passo é reconhecido na forma da reificação da consciência e da segurança ilustrada pela autoconservação. Posteriormente, é preciso recorrer ao homem, percebendo nele as transformações impostas por esse novo estilo de vida.
3. Na esfera do sujeito: reificação e regressão
Impulsionado por esse novo estilo de vida que surge de um instinto de sobrevivência ou autoconservação, o homem assume um caminho de segurança, a fim de fugir dos medos diante do misterioso que paira sob a natureza e buscar o poder sobre o mundo. Tendo sidos produzidos pelo pensamento que interpreta a natureza, os mitos são logo suprimidos pela mente racionalista, que tem em sua base a exatidão matemática: “só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos” (ADORNO, 1985: 20).
Assim, com um novo conceito de verdade, baseado num método de desencanto e conseqüente domínio da natureza, o homem que seria então agente de todo o processo, começa a sofrer as conseqüências de seu envolvimento. “Desencanto significa não apenas a quebra de um feitiço, mas também uma espécie de desgosto. O caminho na direção desse esclarecimento é a técnica, isto é, um tipo de conhecimento em que os conceitos genéricos e as imagens não têm mais o seu lugar assegurado, ocupando o método todo o espaço outrora habitado por eles” (DUARTE, 1997: 45).
Seguindo-se a esse procedimento repetitivo, pautado pela utilização do método, o homem passa a ter como que atrofiadas as partes de sua constituição inutilizadas pela perene ação da racionalidade. A reificação, enquanto uma violência silenciosa, ataca de forma a extirpar do homem os elementos que comprometem a dita “verdade pura”, “objetiva”: “Na verdade, Bacon representa uma espécie de protopositivismo, na medida em que pretende extirpar do conhecimento aqueles elementos antropológicos que comprometem sua precisão e objetividade, o que, para Horkheimer e Adorno, significa uma drástica redução das possibilidades cognitivas humanas” (DUARTE, 2003: 42).
Sendo dessa forma, há que se perceber que o caminho reificante assumido pelo homem em sua relação com a natureza, pautado pela busca de uma verdade teórica objetiva sobre uma realidade nem tão objetiva assim, termina em transformar o próprio homem de uma maneira profunda: “A dominação da natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante; nada sobra dele senão esse eu penso eternamente igual…” (ADORNO, 1985: 38).
Com efeito, a instrução desse processo pelos frankfurtianos tem em vista a realidade violenta na qual estão inseridos. Com isso, a reflexão sobre a reificação deve culminar na preparação de uma sociedade automatizada, onde os homens perdem a própria capacidade de serem, de forma geral, sujeitos de suas próprias ações. “O resultado disso é a formação de um sujeito cuja unilateralidade, a subsmissão à ditadura da autoconservação, é o correlato da impossibilidade de toda a humanidade se tornar sujeito de suas ações, de seu futuro, de seu destino, fato que Adorno e Horkheimer descrevem em termos de uma espécie de minoridade do gênero humano” (DUARTE, 1997: 53).
Por conseguinte, a Idéia de uma minoridade do gênero humano conduz ao questionamento em torno da sociedade formada por esse tipo de homem reificado: se o esclarecimento não trouxe a maioridade do pensamento como queria Kant, mas, ao contrário, evidenciou os elementos de menoridade, como se portará então a sociedade formada pelos homens reificados?
Ao pensar em uma sociedade de homens reificados, esta segue, em linhas gerais, o mesmo processo sofrido pela sua célula básica. Como os homens, a reificação impõe um estado de uma violência oculta, velada pelos progressos encontrados em várias de suas áreas principais. Um estado de regressão, como dizem os autores:
A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força. (ADORNO, 1985: 47)
De fato, o estado de regressão das massas fala a partir ainda da mesma relação entre homem e natureza, uma relação que, apesar de sua longevidade, ainda não alcançou sua conciliação definitiva, mas, pelo contrário, caminha em sentido contrário, na medida em que a presença de um não-idêntico na natureza ainda é afastada pela figura do método. Os homens acabam por se relacionar com tudo o que está à sua volta a partir de formas pré-existentes, impedidos de serem o que são em sua totalidade e tornados simples elementos formadores da coletividade, “seres genéricos” como se referem os frankfurtianos.
4. Conclusão
Como se vê, o percurso histórico que busca entender um pouco a formação da sociedade se depara com a marca de uma violência diferenciada: em vez de perder-se a vida de pessoas concretas, é a humanidade enquanto conceito universal que perde em sentido. Esse esvaziamento antropológico reflete no contexto social, o que permite a existência de um outro tipo de violência, aquela que clama nas barbáries dos novos tempos.
Com efeito, a evolução que existe no conceito de verdade em cada época define os passos dados pelo programa do esclarecimento, programa esse que não se resume a meros aspectos racionais, mas que atinge ainda com maior força o aspecto vivencial. A reificação como violência silenciosa abre caminho para a liberdade humana diante dos medos antigos, medos diante do desconhecido; por outro lado, impõe apenas um caminho a ser seguido para a chamada autoconservação, a partir de onde o medo de “tocar o intocado” é cada vez maior. A perda de sentido se torna inevitável, já que os caminhos a serem seguidos se mostram pré-definidos. No fim, a escolha continua sendo sempre a mesma, porém, cada vez mais tendente para um mesmo pólo: entre a glória dos campos de batalha e a anônima longevidade; entre os riscos da beleza dos cantos das sereias e a segurança da volta para casa; entre a felicidade e a autoconservação; entre o desafio de ser autêntico e a certeza da facilidade da repetição de um mesmo e eterno caminho.
Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
DUARTE, Rodrigo. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
______. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
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Já vi melhores reflexões.
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Toda crítica é bem-vinda, desde que, pelo menos, seja uma crítica. Se pudesse ao menos dizer em que posso melhorar, ficaria agradecido.
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Ao contrário do comentário anterior, aprecio muito suas reflexões. As questões problematizadas por Adorno e aqui desenvolvidas por vc são extremamente contundentes!
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Mauricio de Assis Reis, vc foi intuitivo, simples e direto. Parabéns.
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Me ajudou a compreender alguns conceitos da obra ” Dialética do esclarecimento”. Obra muito difícil, por sinal.
Agradecida!