Adelson Laurindo Clemente Sampaio
1. Introdução
Um dos maiores males da sociedade atual é a indiferença. O homem pós-moderno, calculista e pragmático, não se sente afetado pela realidade e perde, progressivamente, a capacidade de ser atingido com os sofrimentos alheios. Essa realidade ético-antropológica repercute nas relações intersubjetivas que vão se tornando cada vez mais pobres e menos solidárias e gratuitas.
Neste sentido, o outro é desconsiderado no seu valor e dignidade. O apelo, o grito de desespero dos marginalizados e excluídos, as “vítimas”, não consegue eco no coração do homem contemporâneo e da sociedade como um todo. Exemplo claro da indiferença e da desconsideração pelo outro foram as duas grandes guerras mundiais. Além disso, as injustiças, as violências, os ataques terroristas, a perda de valores, o niilismo, o esquecimento do outro, as grandes desigualdades sociais, o racismo, mostram a crescente insensibilidade para com o outro. A conseqüência de tudo isso é o aumento crescente de excluídos, de “vítimas”. A cada dia, inúmeras pessoas, não conseguem ser ouvidas em suas necessidades básicas, clamam por justiça e pelo respeito aos seus direitos básicos de sobrevivência. Apesar da indiferença, com suas vidas subvalorizadas, estas pessoas ainda provocam o pensar, cobram uma postura ética, exigem uma reflexão mais aprofundada e ações mais eficazes.
Como sobreviver com desemprego, fome, miséria, injustiças e violências sociais? O que fazer diante da morte e sacrifício de tantas vidas humanas? Que posição adotar diante de um crescente individualismo, egoísmo e tantos “ismos” que geram “vítimas”?
A “vítima” ou o “outro excluído” provoca, excita, estimula à ação; não tem como ficar acomodado diante da “vítima” que interpela. Sua presença é um pro-vocar (chamar para fora) constante, que nos retira da obsoleta monotonia e nos remete à prática, pois é o clamor do semelhante, de um alter ego que se apresenta diante de mim e exige justiça. Através da responsabilidade ética nasce o impulso positivo: romper com o sistema e a assumir a “vítima” ou o excluído.
O sistema de exclusão e produção da “vítima” chama a atenção e nos convida à reflexão. Faz-se necessário pensar e propor questionamentos, bem como analisar a possibilidade de uma práxis libertadora, visto que a “vítima” nasce do descaso e manipulação do sistema político, da globalização, do capital. Com isso, cabe refletir sobre o sistema vitimizador que vem causando tanto sofrimento aos homens, para, na práxis ter uma resposta ética.
2. A utopia positiva: caminho de libertação
Todo processo de libertação que não traz, em sua base uma articulação entre práxis e teoria, tende a cair em estratégias de oportunismos, ou seja, pode se transformar em meio de promoção de sujeitos que não estão interessados em, de fato, libertar as vítimas. No decorrer da história, muitos fatos acontecidos comprovaram que a libertação que se faz sem uma fundamentação teórica concreta e sem a participação das vítimas em simetria, acarretam grandes desastres ou foram ineficazes. O sonho de liberdade pode se tornar realidade, desde que se conjugue efetivamente teoria e práxis e brote da própria comunidade de vítimas, caso contrário, pode se transformar em pesadelo e uma utopia que beneficia somente oportunistas e aproveitadores. Eles podem levar à falência um projeto que tem por finalidade a promoção de vidas.
Quer se trate da organização ou de outra coisa, o oportunismo tem um só princípio: a falta de princípios (Prinzipienlosigkeit). Escolhe seus meios (Mitte) de acordo com as circunstâncias, se estes meios lhe parecem aptos para conseguir os fins (Zwecken) que persegue. (DUSSEL, 2007: 514)
O processo de libertação, muitas vezes, se confunde com uma utopia pelo fato de suas ações estarem na “contramão” da lógica do mercado, pois, são ações que não terão um resultado imediato, mas construído como projeto futuro. São ações de transformação que se gestam no chão concreto da realidade, a partir das necessidades que são concretas, como a fome, a miséria, a doença, o desemprego; são ações que adquirem o rosto da violência e exigem uma atitude imediata. Não se pode aceitar uma ordem política que vitimiza. Trata-se de um ver além, de uma proposta futura e possível que vai se concretizando. Como precisa Dussel, a “utopia concreta é fruto histórico do homem, não se realizando mecanicamente” (DUSSEL, 1977a: 176-7).
Marx pensa […] que na sociedade futura, a utopia, que se constitui como um horizonte crítico, … é a plena realização da individualidade na responsável comunitarização de toda a atividade humana; utopia que tem, no desenvolvimento da humanidade presente, suas condições de possibilidade. (DUSSEL, 1985: 357)
Por este motivo, quando a proposta de libertação é descontextualizada e não tem a participação simétrica das vítimas, ela não passará de uma utopia. Neste caso, a violência pura e simples substitui os argumentos, tornando-se um irracionalismo desencarnado. Com isso, o reino da morte se impõe em nome do reino da liberdade. Algo que é muito distante de todo o projeto de uma ética da libertação.
A utopia tende a ser um projeto de realização, na medida em que incita o homem a agir e tem por conseqüência promover a libertação de toda opressão. Trata-se de uma esperança calcada na realidade concreta. Somente assim, será possível superar a alienação. “A negação da alienação e a construção de uma sociedade humana de trabalho criam um novo tipo de sociedade” (PINTO, 1962: 20).
A utopia concreta guia a reflexão do filósofo, sendo possível, a partir dela, julgar a alienação e a opressão a que são submetidas as classes populares e oprimidas. Cabe, portanto, aos filósofos, através da racionalidade, questionar o sistema, propondo assim, uma antecipação do futuro. Trata-se de construir um pensar otimista, que visa contribuir para a libertação dos oprimidos. Trata-se de dar significado concreto à luta por direitos iguais, de tirar as máscaras e os ideais burgueses que se fazem presente e assim promover a libertação.
Segundo Vieira, historiador comprometido com a “libertação, como Dussel, tal libertação ocorre quando os valores de liberdade, igualdade e fraternidade (a herança tricolor, como precisa Bloch), são despojadas da conotação abstrato-formal que a burguesia lhes dá, orientando, portanto, a uma real libertação, aquela em que o homem oprimido se realiza enquanto homem” (VIEIRA, 1975: 137). Trata-se de buscar meios concretos para fugir de todas as negações e construir uma possível estrutura social justa, onde o homem possa produzir, reproduzir e desenvolver sua vida.
(…) transformações construtivas, possíveis e exigidas; em último termo: uma nova ordem com base num programa concretamente planejado que vai realizando progressivamente, mas nunca totalmente, a utopia possível (…).(DUSSEL, 2007: 558)
3. A práxis libertadora
Ao iniciar tal empreitada na companhia de Dussel, percebe-se uma esperança solidária por libertação, que nasce a partir do sujeito, da vítima, que é autor (a) de sua libertação, pela práxis. Esse processo ocorre através união dos pares em simetria, (no caso, as vítimas), que intersubjetivamente se dispõem a reivindicar seus direitos. São os membros de um gruo excluído que se unem para juntos lutarem pelo re-conhecimento, pela libertação de todo tipo de exclusão, dominação e alienação.
O Sujeito da práxis de libertação é o sujeito vivo, necessitado, natural, e por isso cultural, em último termo a vítima, a comunidade das vítimas e os co-responsavelmente articulados a ela. O “lugar” último, então, do discurso, do enunciado crítico, são as vítimas empíricas, cujas vidas estão em risco. (DUSSEL, 2007: 530)
Para que haja a libertação é necessário projetos históricos, concretos, nascidos a partir da realidade das vítimas, que considerem os indivíduos excluídos. Desta forma, os projetos devem nascer a partir da comunidade de vítimas. As vítimas lutarão por aquilo que acreditam, daí a razão pela qual os projetos devem ser gestados na sua comunidade. Devem ser projetos que se constroem a cada dia e tenham como ponto de partida o humano, a produção, reprodução e o desenvolvimento da vida em comunidade.
É necessário que a práxis de libertação que surge na comunidade de vítimas, possibilitem a transformação das mesmas, mas seja guiada por princípios e critérios éticos que tenham por parâmetro a vida. Não é um simples formar, mas trans-formar, formar para além.
Com a tomada de consciência e a necessidade de transformação, surge o juízo ético-crítico negativo que reivindica o novo, o positivo. O que possibilita analisar e criticar a ordem do sistema, o que resulta na proclamação da dissolução do mesmo, a necessidade de seu desaparecimento. A vítima busca um novo sistema, onde seja possível viver e participar livremente.
A “razão ético-crítica” busca a transformação, a práxis de libertação, ou a ação transformadora de normas, ações, instituições, sistema ou eticidade, a partir das vítimas. É na adoção deste posicionamento que nasce a ação concreta e comprometida com os oprimidos, uma luta transformadora (libertadora) dos oprimidos ou excluídos.
A consciência ético-crítica é que possibilita, de fato, a transformação da realidade onde se encontra as vítimas; é a partir dela que será possível a nova construção positiva das normas, ações, microestruturas, instituições ou sistema de eticidades, onde a produção, reprodução e o desenvolvimento da vida humana em geral seja possível.
Tudo isso será possível pela responsabilidade a priori pelo outro, que trará consigo conseqüências, pois, seus princípios materiais e formais exigem uma responsabilidade radical, o dever da produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito humano (DUSSEL, 2007: 573). O que só será possível com a co-responsabilidade solidária, com validade intersubjetiva.
O processo de libertação deve levar em conta o desenvolvimento da vida das vítimas, a satisfação de suas necessidades (desde comer até a contemplação estética e mística) e dos seus desejos (pulsões corporais comunitárias do prazer gozoso), da história como progresso qualitativo da discursividade comunicativa, participativa e simétrica, como autonomia e liberdade.
4. Conclusão
Após explorar o arcabouço filosófico de Dussel, foi possível perceber que a “vítima” ou o “outro excluído” ocupa lugar central em seus escritos. Para o filósofo latino-americano, uma ética que não leva em consideração a produção, a reprodução e o desenvolvimento da vida dos indivíduos oprimidos, carece de fundamento e sentido. Ele rejeita as teorias éticas formais e abstratas que não têm nenhuma preocupação ou não fazem nenhuma referência à práxis concreta dos grupos oprimidos.
Ernest Bloch nos apresenta uma visão positiva, mesmo com tantas dificuldades, acredita na utópica positiva como possibilidade para construir uma sociedade melhor. É a partir do sonho com um lugar utópico, perfeito que construímos um melhor e possível. Pois os sonhos dão animo para lutar e refletir sobre uma ética, mesmo quando a sociedade prega valores que são contrários a vida.
Dussel acredita que para haver libertação da vítima, é preciso que ela, responsavelmente, assuma sua condição de exclusão e, unida simetricamente com as outras “vítimas”, reivindiquem juntas o seu reconhecimento. Isto ocorre a partir de um processo de tomada de consciência ético-crítica, que possibilitará à “vítima” agir segundo juízos éticos, que servirão de padrão para as suas escolhas e ações e isso possibilitará a reformulação das estruturas, das ações e das instituições, etc.
O mais interessante é que, para Dussel, a vida deve ser o parâmetro de toda reflexão e ação. Por isto, deve ser respeitada e promovida em todas as circunstâncias. Com isso, deve ser criticada e repensada toda ação ou instituição que exclui, oprime e, em última instância, provoca a morte.
Para o pensador latino-americano a libertação só será possível, de fato com “a co-res-ponsabilidade solidária, com validade intersubjetiva, partindo do critério de verdade vida-morte” (DUSSEL, 2007: 574). Segundo ele, somente a partir da responsabilidade mútua e da consideração da vida como valor primeiro, é que será possível “sair do caminho tortuoso sempre fronteiriço, no qual caminha a humanidade como equilibrista sobre a corda bamba, entre os abismos da cínica insensibilidade ética irresponsável para com as “vítimas” ou a paranóia fundamentalista necrofílica que leva a humanidade a um suicídio coletivo” (DUSSEL, 2007: 574).
A reflexão de Dussel é muito lúcida e equilibrada: ao mesmo tempo em que ele reconhece o valor da reflexão teórica, como motor que pode promover a conscientização das “vítimas” e levá-las a um processo de reivindicação e libertação, por outro lado, ele percebe que a conscientização somente não é capaz de libertar a “vítima”, se não for gestada no seio da sua realidade. Dussel percebe ainda que é necessário que as “vítimas”se unam, em torno de um ideal comum, para efetivar a libertação através de uma práxis libertadora.
Referências
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2007.
_____. Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. Trad. Georges I. Massiat. São Paulo: Paulus, 1995.
_____. Filosofia da libertação na América Latina. Trad. Luiz de João Gaio. São Paulo: Loyola, 1977.
_____. La producción de Marx: un comentário aos Grundrisse. México: Siglo XXI, 1985.
_____. Para uma ética da Libertação latino-americana. São Paulo: Loyola, 1977.
PINTO, A. P. Por que os ricos não fazem greve? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
VIEIRA, Antonio Rufino. Marxismo e filosofia latino-americana: uma aproximação dentre Ernest Bloch e Enrique Dussel. Reflexao (67/68) Campinas, 1975.
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Todos deveríamos ter como lição de casa fazer uma boa leitura. Nesse momento por exemplo, Dussel levou-me a refletir ainda mais sobre a vida, que às vezes acho sem solução.Ele diz que “a vida deve ser parâmetro de toda reflexão” e ainda mais… não desistirmos de nossos sonhos.Que belas palavras:”os sonhos dão ânimo para lutar e refletir sobre uma ética, mesmo quando a sociedade prega valores que são contrários a vida”. É claro que é um pé no sonho e outro na realidade. E para finalizar deixo este pensamento que gostei muito. “Ame a realidade que você constrói e nada deterá o seu vôo!”
Parabéns pelo trabalho!