Lucas Antônio Ferreira
Propor-se-á, neste artigo, demonstrar o pensamento filosófico de René Descartes acerca do cogito, tendo como cunho inicial a dúvida metódica, sabendo-se que o intento desta não é definir nenhuma verdade absoluta, mas desfazer as opiniões que o próprio Descartes tinha como verdadeiras, tudo que lhe fora ensinado desde criança, e construir algo sólido e indubitável.
Nesta perspectiva, Descartes observa que os sentidos são enganosos e podem nos levar ao erro. Ele exemplifica mostrando que ao ver um galho de árvore na água pode parecer que está torto e, no entanto, ao retirá-lo da água percebe-se que ele é reto e, também outro exemplo, com “torres que à distância parecem redondas, de perto afiguram-se quadradas” (COTTINGHAM, 1995, p. 79). Assim, Descartes afirma que não se deve confiar nos sentidos: “(…) experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez” (DESCARTES, 1979, p. 86).
Outro aspecto que Descartes coloca em dúvida, apresentando-o como enganoso, é o sonho. Pois, muitas vezes, ele teve sonhos que lhe pareciam bem reais, e que não lhe pareciam ser sonhos de fato, tendo assim a sensação de estar vivendo algo real. Uma pessoa pode estar sonhando que está lendo este artigo. Pode ser que tudo seja fruto da imaginação, ou seja, da capacidade de visualizar na mente, e não dos olhos, um objeto. Porém, assim como uma pintura e/ou uma foto é uma cópia de algo real, o sonho também é uma cópia da realidade. Como escreve Descartes: “(…) é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro” (DESCARTES, 1979, p. 86). Com isso, não se pode confiar nos sentidos e nem na imaginação.
Para Descartes, há algo de que não se deve duvidar: do entendimento, ou seja, do raciocínio. Ainda que os sentidos nos enganem, ainda que haja confusão entre sonho e realidade, temos que concordar que dois mais três sempre serão cinco e que um quadrado nunca terá mais de quatro lados. Porém, Descartes ainda não está totalmente convencido. Ele se questiona se Deus seria um tipo de um gênio maligno que sente prazer em induzi-lo ao erro, enganando-o inclusive nas certezas matemáticas.
(…) como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior clareza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que pode imaginar algo mais fácil que isto. (DESCARTES, 1979, p. 87)
Com isso, Descartes duvidou dos sentidos, duvidou da imaginação e até mesmo do entendimento, chegando, portanto, a uma dúvida hiperbólica[1].
Neste ponto, Descartes busca alguma certeza, apoiando-se no ponto de Arquimedes[2], sobre o qual poder-se-á encontrar uma coisa que seja certa e indubitável e levantará edifícios para outras certezas. Continuando com o mesmo princípio de afastar tudo que for duvidoso de seu caminho, sua primeira atitude é supor que todas as coisas são falsas: “(…) persuadindo-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras me apresenta; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espírito” (DESCARTES, 1979, p. 91). Neste instante, ele observa que todas as coisas não são tão confiáveis, uma vez que pode haver um gênio maligno, como foi apresentado anteriormente, que coloca tais crenças em seus pensamentos. Diante disto, ele chega a uma certeza de que se ele é enganado, então ele existe.
Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a conceba em meu espírito. (DESCARTES, 1979, p. 92)
Descartes pode estar certo de sua existência. Mas, se ele não tem certeza da existência de seu corpo, dos sentidos, como pode dizer “eu existo”? Ora, até então Descartes pensava que era provido de braços, pernas, mãos, rosto, enfim um conjunto de membros que forma um corpo. Além disso, tendo as dimensões da alma: sentir, pensar, alimentar e outros. Mas, pelo fato de ele ter certeza que estas coisas corpóreas não existam nele, por causa do gênio enganador, ele começa também a duvidar dessas dimensões da alma, pois estas necessitam do corpo. Resta então o pensar, que ele julga firmemente ser a única dimensão da alma existente nele, encontrando assim, seu ponto arquimediano, pois se “eu sou, eu existo” e existo enquanto penso, então “penso, logo existo” (REALE, 2004, p. 309).
Os questionamentos acerca do que “eu sou” ainda continuam. Descartes, procurando descobrir e definir sua existência, afirma que ela é uma res cogitans[3], ou seja, uma realidade pensante, uma coisa que pensa. Mas o que é uma coisa que pensa? Descartes afirma: “É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1979, p. 95). Ele diz que essas coisas pertencem à sua natureza, pois, ao contrário, ele nem poderia estar pensando para escrever. Continuando o raciocínio, percebe-se que, mesmo que a imaginação seja falaz, não se pode negar que a capacidade de imaginar exista. Pode se dizer o mesmo quanto aos atos relacionados com os órgãos dos sentidos, pois mesmo que a ação de ver, ouvir, sentir se relacionam com coisas falsas, eles existem, pois Descartes está vendo, ouvindo e sentindo.
Numa visão cartesiana, o corpo parecia ser muito mais importante que a alma. Porém, Descartes ao fazer uma análise de um pedaço de cera que acaba de ser tirado de uma colmeia, observa que pelos sentidos podem se ter algumas características, no entanto estas não revelam realmente o que seja a cera. Uma vez que, aquecendo-a no fogo pode haver alterações no gosto, na cor, no cheiro e em outras características. Mas, mesmo assim, a cera não deixa de ser o que ela é: cera, pois, contém nela a sua natureza, apesar das mutações que se possam ter. Descartes, com isso, afirma que a única coisa que permanecerá é a extensão, ou seja, o corpo é, essencialmente, a extensão, a res extensa[4]. Chega-se a essa certeza não pelos sentidos, apesar destes perceberem as mudanças da cera, mas pelo entendimento, isto é, pela razão. Assim, pode-se afirmar que a res extensa é uma ideia clara e distinta da mente e do espírito. Neste sentido, Descartes inverte a sua concepção: “(…) reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito” (DESCARTES, 1979, p. 98), ou seja, o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo.
Descartes, porém, ainda não está totalmente satisfeito. A única certeza que ele tem é a de saber que é um ser pensante e que existe. E isto o fará analisar a existência de Deus e se ele tem o poder de enganar. Isto, pois, sem o conhecimento destas duas verdades, não seria possível ter certeza de coisa alguma, uma vez que Descartes pressupôs a existência de um deus enganador para se chegar à certeza do cogito.
Ele entendia pelo nome de Deus “uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual todas as coisas que foram criadas e produzidas” (REALE, 2004, p. 314). Por conseguinte, estas ideias são tão grandes que não poderiam ter sua origem em Descartes, logo, pode-se concluir que Deus existe. Pois, por mais que a ideia de substância esteja na mente dele, sendo ele uma substância finita, não poderia conter a ideia de uma substância infinita, se não tivesse sido colocada por uma substância verdadeiramente infinita. Pode-se, com isso, afirmar que a ideia de infinito é anterior à ideia de finito, conforme afirma o filósofo: “como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma ideia de ser mais perfeito que o meu” (DESCARTES, 1979, p. 108).
Descartes observa que a ideia de Deus nasceu e foi produzida com ele desde o momento em que foi criado. A argumentação cartesiana para provar a existência de Deus consiste em afirmar que: se eu tenho a ideia de Deus é porque Ele existe e foi Ele quem colocou esta ideia em minha mente. Assim, Descartes concebeu a existência de um Deus que é perfeito, infinito e eterno, que não é enganador, e do qual todas as coisas dependem. As coisas que são claras e distintas não podem deixar de ser verdadeiras, e “a certeza e a verdade de toda ciência dependem apenas do conhecimento do verdadeiro Deus” (REALE, 2004, p. 306). O cogito é, portanto, uma criatura de Deus. E é ele quem garante a existência desse Deus e vice-versa.
Podemos perceber a profundidade e a coerência das ideias de Descartes, visto que ele escolheu a dúvida para alcançar seu objetivo e através dela chegou a uma certeza. Porém, ao fazer uma análise crítica sobre seus conceitos, podemos levantar alguns questionamentos. Teria feito Descartes o caminho certo para chegar ao cogito? A razão por si só consegue se sustentar? Somos pura razão?
Referências
COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Tradução de Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
DESCARTES, René. Meditações. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Descartes. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. v. 3.
[1] Sistematizada e bastante generalizada.
[2] “Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro” (DESCARTES, 1979, p. 91). Por isto, Descartes queria encontrar um ponto que fosse fixo para levantar e construir um edifício para outras certezas.
[3] Res cogitans é, portanto, a “existência espiritual do homem sem nenhuma ruptura entre pensar e ser, é a alma humana como realidade pensante que é pensamento em ato” (REALE, 2004, p. 293).
[4] Res extensa é, portanto, o “mundo material (compreendendo obviamente o corpo humano), do qual, justamente, se pode predicar como essencial apenas a propriedade da extensão” (REALE, 2004, p. 293).