Daniel Junior dos Santos
A pretensão pela verdade foi e será sempre um desejo de todo o ser humano. Impelido por esta necessidade não só de conhecimento, mas de apreensão da verdade, o período que conhecemos como modernidade é marcado pela ruptura da tradição e pela ascensão da razão, exacerbando-se o subjetivismo e solipsismo do eu em busca de uma verdade indubitável e o detrimento de sua relação com o outro e com a realidade que o circunda. Neste sentido, o objetivo do presente artigo é o de apresentar a proposta filosófica da hermenêutica de Hans Georg Gadamer[1], não como um novo método epistemológico, porém como uma alternativa à herança moderna sendo ferramenta de resgate e atualização do conhecimento via diálogo entre texto e intérprete.
1. Crítica ao Método
Caracterizada pelo Renascimento como movimento de volta ao período clássico e advento do Iluminismo – triunfo da razão e liberdade do sujeito – o período moderno inaugurado pela filosofia de René Descartes (1596-1650), rompe não só com a estrutura das instituições e da tradição, como demarca uma virada no pensamento filosófico: de uma universalidade absoluta na figura de Deus para um subjetivismo racionalista na forma humana. Contudo, este não foi só o único contributo da filosofia cartesiana. Soma-se ainda a descoberta do método, o qual será útil não só para as ciências, mas para o próprio filosofar:
A importância de Descartes está em seu questionamento da legitimidade dos textos, cuja autoridade se fundamenta em pouco mais que um apelo de autovalidação do poder da tradição. Descartes inaugura um movimento sísmico na legitimidade; uma mudança de paradigma da autoridade de textos para a autoridade da razão. (LAWN, 2007, p. 49).
Nesta empreitada, o Iluminismo pode ser descrito como hiperbolização da busca pelo saber humano através da técnica e dos meios científicos e esvaecimento da cultura e dos valores tradicionais. A partir deste propósito, o método cartesiano advindo das ciências exatas torna-se a verdade autoevidente do próprio cogito: “[…] a verdade é um atributo interno do conhecimento individual”. (LAWN, 2007, p. 51). Entretanto, como é descrito este método? Qual é a sua legitimidade? Quanto a isto, Descartes descreve:
[…] em lugar desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, […] o primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; […] o segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, […] até o conhecimento dos mais compostos […]. E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1999, p. 50-51).
A partir deste viés da análise, ordem, composição e enumeração, nada pode ser concebido clara e distintamente fora do método experimental. Assim, o método é o marco do iluminismo e da filosofia moderna, como da queda da tradição e rejeição da autoridade textual:
O problema real com a sabedoria clássica da Antiguidade, do ponto de vista do novo espírito científico, é que sua autoridade pode estar fundada em preconceito, superstição, opinião, nas fantasias do costume histórico e nos julgamentos mal formulados daqueles que não têm o insight e os princípios do questionamento científico. Para Descartes, a beleza desse método é que ele é irrefutável, claramente estabelecido e, consequentemente, verdade auto-evidente. (LAWN, 2007, p. 50).
Contrário a esta hegemonia do método e enquadramento da verdade, Gadamer em sua proposta hermenêutica pretende de maneira fenomenológica voltar às coisas mesmas, ou seja, pensar e por sua vez interpretar o mundo desvinculado de um método. O método aprisiona e limita o conhecimento dentro de padrões e condições; já o saber absoluto é impossível de ser conquistado. Neste sentido, a hermenêutica é um puro desvelar do texto a partir da história de seus efeitos diante dos preconceitos de um determinado intérprete. Ela é mais que um método científico, designa condição ontológica: “A hermenêutica é, pois, algo mais que um método das ciências ou o distintivo de um determinado grupo de ciências. Designa sobretudo uma capacidade natural do ser humano”. (GADAMER, 2002, p. 350).
Assim, com a hermenêutica tenta-se superar a herança racionalista e a leitura errônea dos termos preconceito e tradição pelos iluministas. Nesta perspectiva, enquanto o iluminismo com sua razão progressista destrói o passado visando um futuro e o romantismo tende a fazer o inverso, a modernidade é marcada pela dependência do homem em relação ao método indubitável. Entretanto, tal ruptura não pode ignorar que a razão reside dentro de um período e contexto cultural. Destarte, a hermenêutica dá-se no mundo marcado pela história, linguagem e seus preconceitos, e não numa razão autossuficiente, como atesta Gadamer (1998, p. 281): “Para nós a razão somente existe como real e histórica, isto significa simplesmente: a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual se exerce”.
Desta negação da tradição em vista da afirmação da razão no discurso racionalista, vê-se a auto-exclusão da própria racionalidade: “Portanto, ignorar a tradição como um oposto da razão é ignorar que a razão pode, em si, ser uma característica da tradição”. (LAWN, 2007, p. 55). Deste modo, nunca podemos destituir tanto a história como a cultura de seu lugar, como queria a modernidade, pois o homo hermeneuticus encontra-se dentro da história e da tradição.
2. Hermenêutica: atualização gnosiológica
Efetivada a crítica à modernidade, o objetivo da hermenêutica gadameriana, influenciada pelo pensamento de Heidegger, é o de superação das visões distorcidas sob os preconceitos propondo através disso uma compreensão adequada da finitude, a qual não se limite a nossa estrutura enquanto ser, mas também enquanto ser histórico. Mas enquanto seres interpretantes situados num mundo, qual é o sentido e as condições de nossas interpretações? Quanto a isto, um dos grandes contributos de Gadamer para a hermenêutica é a elucidação do conceito de círculo hermenêutico advindo da influência heideggeriana:
O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado, quando a interpretação compreender que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma. (GADAMER, 1998, p. 401).
Desta forma, o círculo hermenêutico é o movimento da compreensão, ou seja, do projetar-se, fluxo da saída de si e das próprias impressões, interpretações e ir ao encontro do texto. Nessa dinâmica de infinitas possibilidades de interpretações, ao nos posicionarmos diante de um texto, temos dele uma pré-compreensão, um pré-conceito por meio da transmissão de fatores culturais. Ao ser submetido à interpretação, o intérprete deve fazer jus das informações e condições do texto, formulando e reformulando sua leitura sobre o mesmo. Com isso, o interpretante põe seus preconceitos ante o crivo do texto, num ciclo infinito e intermitente de interpretações: “Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar”. (GADAMER, 2002, p. 75).
Fica-se estabelecido neste caso que a hermenêutica não consiste numa decodificação, muito menos numa técnica, mas numa compreensão constante, movimento de encontro, interpretação, análise e reinterpretação de um texto. Desta reciprocidade entre texto e interpretante dá-se o que denominamos de diálogo: “A principal tarefa do intérprete é descobrir a pergunta a que o texto vem dar resposta; compreender um texto é compreender a pergunta”. (BLEICHER, 1980, p. 161). Por sua vez, a tarefa de interpretar e compreender, pela qual se caracteriza a hermenêutica não é algo monológico, todavia um movimento dialógico de pergunta e resposta, entre texto e intérprete.
Dentro desta dialética outro fator de grande relevância é o deslocamento do leitor até o texto, do dito ao não dito, do questionado ao questionador. Conquanto, para uma interpretação correta devemo-nos atentar para os desvios e erros de uma pré-interpretação e irmos às coisas mesmas, ou propriamente ao texto, tendo sempre em conta a consciência de sua alteridade – o texto fala por si mesmo, tem contexto, estilo e a visão do autor no qual foi escrito: “Quem quiser compreender um texto está, ao contrário, disposto a deixar que ele diga alguma coisa”. (GADAMER, 2002, p. 76).
Consequentemente, a dialética alcançará autenticidade no momento em que se der a fusão dos horizontes, no qual o entendimento do texto se dará por sua interpretação no presente visando um futuro, sem se esquecer do seu passado. Logo, dar-se conta dos próprios preconceitos antes de ler o texto é tarefa indispensável a todo interpretante:
A compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz sentido que o interprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto a sua origem e validez. (GADAMER, 1998, p. 403).
Enfim, a postura de análise dos pré-julgamentos não se trata de um aniquilamento das próprias opiniões a respeito do texto, mas da abertura ao diálogo. A essência deste se dá pelo ato de perguntar, questionar, do pôr-se em acordo com o outro. O conhecimento hermenêutico neste sentido brota da abertura do autor à experiência do texto sendo mediado pelo fenômeno da linguagem que garante o acordo entre os interlocutores e sela a compreensão sobre a coisa: “Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto e é, ao mesmo tempo, a linguagem própria de seu intérprete”. (GADAMER, 1998, p. 566-567).
Abrir-se ao outro, portanto, ao texto neste sentido é desinstalar-se do próprio conhecimento embarcando posteriormente num intercâmbio de pareceres donde não existe uma verdade absoluta e pré-estabelecida por um método. A verdade é diálogo, alétheia, desvelamento na arte, linguagem e história. O conhecimento não é adequação, representação, correspondência, mas sim revelação, manifestação. Assim sendo, quem quiser chegar à verdade deverá sempre se projetar, revisitar seus conhecimentos prévios num diálogo contínuo e fascinante com o texto: “É tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum”. (GADAMER, 2002, p. 73).
Considerações finais
Em suma, a legitimidade do saber hermenêutico encontra-se distante da mediação de um método acabado visado para um saber absoluto como é descrita a pretensão filosófica da modernidade. Em contrapartida a este raciocínio, a dialética existente entre texto e interpretante determina o devir do conhecimento humano dentro da história numa trajetória de desconstrução e reconstrução dos preconceitos, marcado pela infinitude de possibilidades de interpretações. A arte de interpretar, longe de se desvincular dos parâmetros da alteridade dos efeitos do texto, é um ininterrupto exercício humano de compreender e entender as coisas e o mundo. A hermenêutica, por assim dizer, não é só um resgate do passado pelo presente visando um futuro, mas uma atualização dos modos como captamos a verdade que nos é apresentada. Destarte, o conhecimento é efêmero, a interpretação é “eterna”.
Referências
BLEICHER, Josef. Hermenêutica Contemporânea. Tradução de Maria Georgina Segurado. Rio de Janeiro: Edições 70, 1980.
DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores)
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: complementos e índice. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
LAWN, Chris. Compreender Gadamer.Tradução de Hélio Magri Filho. Petrópolis: Vozes, 2007.
[1] Nasceu em 1900 e morreu em 2002 na Alemanha. Classicista e criador das hermenêuticas filosóficas é considerado o Grande Velho Homem da filosofia alemã. Dentre suas obras principais destaca-se Verdade e Método, comoum grande contributo à filosofia hermenêutica. (cf. LAWN, Compreender Gadamer, 2007, p. 31).
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Agradecendo pelo texto. Ajudou-me bastante na compreensão dessa hermenêutica que tenho visto nos métodos de pesquisa acadêmicas de saúde. Vou procurar saber mais sobre a influência de Heidegger em Gadamer. Fiquei curioso! Sugestões? 🙂