Daniel Fernandes Moreira *
Fabrício Sampaio Coelho **
Introdução
A questão religiosa na vida de Nietzsche sempre foi pertinente: quando criança, a exemplo do pai, queria se tornar pastor. Na juventude entra para a universidade cursando teologia. Contudo, deixa inacabada essa faculdade e se entrega ao estudo da filologia que irá resultar na sua introdução ao questionamento filosófico. Entretanto, mesmo depois de abandonada a carreira religiosa e até mesmo a fé, a discussão sobre a religião permanece ativa e de s
uma importância na filosofia nietzschiana. O presente artigo tem como objetivo analisar a relação entre religião e morte de Deus. Para isso, nos valendo de algumas de suas obras, como A Gaia Ciência e Humano, demasiado humano, teceremos, de forma introdutória, a construção do niilismo na filosofia de Friedrich Nietzsche, a fim de demonstramos que, com a morte de Deus, não só os valores, o homem e o mundo, como compreendidos na modernidade, mas a religião perde seu espaço e torna-se como que uma “bengala” para “Pessoas para quem a vida cotidiana é muito vazia e monótona” (NIETZSCHE, HH I §115, p. 89).
A morte de Deus: uma possibilidade para o niilismo
A maior constatação do século é a morte de Deus, o descredito do Deus cristão. Deus morreu! O Deus cristão que outrora era o centro de tudo agora perdera seu espaço. O Deus que era a base dos valores de toda a Europa não mais se sustenta e, consequentemente sua crença perde o valor. Para Nietzsche o homem moderno matou Deus, Ele não mais possui espaço. Com o advento da ciência, nos séculos XVI e XVII, Deus começa a não mais ser o fundamento de tudo, como se tinha, na Idade Media, no Teocentrismo. Agora Deus ocupa um segundo plano, caiu num descredito, o homem moderno é para Nietzsche o assassino de Deus.
Como vemos, a morte de Deus é um fato para o qual se encaminhava todo o Ocidente. Esta afirmativa não surge de um nada, mas como um fato constatado no período moderno sendo fruto final daquilo para o qual o Iluminismo se encaminhava. Com a Morte de Deus a grande questão que se levanta é: quem é o responsável pela Sua morte? Quem matou Deus? Para Nietzsche, os grandes culpados por sua morte somos todos nós, fomos nós que matamos Deus. Como ele nos apresenta em A Gaia Ciência, no aforisma do homem louco:
O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “para onde foi Deus?”, gritou ele, já lhes direi! Nós o matamos-você e eu. Somos todos seus assassinos! […] que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sois? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda “em cima” e “embaixo”? Não vagamos como que um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitecer eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro de putrefação divina?- também os deuses apodrecem! Deus está morto! E nós o matamos! (NIETZSCHE, GC, § 125 p. 148).
Deus era o valor absoluto que regia o mundo e fundamentava as leis, mas agora que o Deus cristão perdeu seu credito a questão que se levanta é o que nos resta. “O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará deste sangue?” (NIETZSCHE, GC, § 125 p. 148). Com a morte de Deus estamos condenados a vagar num vazio de sentido, o que é agora a base que nos sustentará?
Ao se retirar aquele que era o fundamento de praticamente tudo o que se tinha de constituído, advém uma grande tensão e expectativa. Nas palavras de Nietzsche este evento é de fato extraordinariamente grande, e alcança uma dimensão tão extensa que foge a compreensão de muitos. O problema que acarreta este fato é demasiadamente extenso e, se esta crença vai ao chão, muitas outras seguirão este acontecimento. Porque, basicamente, tudo o que até então se tinha estava enraizado nela, por assim dizer, toda a moral europeia.
O maior acontecimento recente- o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu crédito- já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa […] Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu- e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construída, nela apoiado, nela arraigado: toda a moral europeia, por exemplo. (NIETZSCHE, GC, § 343 p. 233).
Com a morte de Deus o mundo agora vaga num vazio de sentido, em um niilismo. Contudo, o termo niilismo não é uma palavra criada por Nietzsche, ela já existia bem antes, mas Nietzsche faz uma reinterpretação deste termo: “Quando Nietzsche utiliza algo de outro autor, o que ele faz muito, ele o reinterpreta profundamente.” (LEFRANC, 2008, p.190).
No entanto, é em Nietzsche que o termo niilismo se torna objeto de uma reflexão filosófica, que ganha toda uma expressão. Ele é, nas palavras de Franco Volpi, “o profeta máximo e teórico maior do niilismo”.
É na obra de Nietzsche- Particularmente nos fragmentos dos anos 1880 publicados após sua morte na duvidosa e discutível compilação Der Wille zur Macht (A vontade de poder), com sua primeira edição em 1901 e a segunda, bem mais volumosa, em, 1906- que o niilismo se torna o objeto de uma reflexão filosófica (…) não é exagero, portanto, considerar Nietsche o profeta máximo e o teórico maior do niilismo, alguém que cedo intuiu a ‘doença’ do século e sua respectiva terapia. (VOLPI, 1996, 43).
Em Nietzsche o termo niilismo é tido como perda de valores, perda de sentido. Por isso podemos analisar diversas formas de vivencia do niilismo, das quais destacamos três: o niilismo passivo, o niilismo reativo e o niilismo ativo.
Niilismo passivo é a negação como qualidade da vontade de poder, uma ficção de valores superiores assumidos pela vida, uma vontade de nada expresso nos valores superiores. Nega-se a vida em prol de valores superiores. No querer alcançar um valor superior futuro ocorre à negação da vida. É quando se nega a vida em razão de algo que pode se ter futuramente.
O Niilismo reativo é justamente uma reação a esses valores superiores que são apresentados e contra esse mundo suprassensível. Descarta-se esses valores superiores, nega-lhes a validade, a existência. Se com o niilismo passivo tínhamos um desprezo da vida pelo desejo dos valores superiores, no niilismo reativo temos a negação desses valores absolutos. O niilista reativo nega a Deus, bem como todas as formas do suprassensível: não existe o verdadeiro, Deus morreu. “Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requien aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: ‘o que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE, GC, § 125 p. 148.)
O niilismo ativo é expresso pela força, um niilismo de luta e distinção. É assumir a vida com todas as suas dimensões sem buscar algo que seja superior a si e sem perder a vontade de viver. É o niilismo que nos impele a uma nova forma de vivência para além da religião e da moral:
Quando uma pessoa chega a convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se ‘crente’; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo o desejo de certeza, treinado que é em si equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em danças até mesmo a beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência (NIETZSCHE, GC, § 347, p. 241)
O edifício religioso é desmoronado
Após esta explanação sobre a gênese e desenvolvimento do pensamento niilista de nosso autor, devemos agora nos interrogar sobre qual será a relação entre ambos, a saber: niilismo e religião. Questão, aliás, que é o ponto de partida e de chegada para esse nosso trabalho. Como sabemos, Nietzsche é de família cristã, tendo como pai e avós autênticos cristãos e pastores. Contudo, essa relação direta com o cristianismo não o impediu de dar também à religião lugar no seu pensamento de desconstrução genealógica. Por isso, para melhor compreendermos onde se situa a crítica nietzschiana à religião, será preciso que compreendamos como a religiosidade entrou na vida humana.
A relação homem-natureza, nos primórdios da humanidade não era tão fácil como vemos hoje. Para os primeiros homens ela permanecia um mistério impenetrável, pois que “naqueles tempos nada se sabia sobre as leis da natureza; seja na terra, seja no céu, nada tinha que suceder; uma estação, o sol, a chuva podiam vir ou faltar. Não havia qualquer noção de causalidade natural” (NIETZSCHE, HH I, §111, p. 83). Com isso, a natureza se apresentava carente de regras. Dessa forma, é interpretada como um monstro que precisa ser domado. É exatamente para isso que surge a religião: uma espécie de mágica que pode dominar e driblar as monstruosidades da natureza. Portanto, “quando se remava, não era o remo que movia o barco; remar era apenas uma cerimônia mágica, pela qual se forçava o demônio a mover o barco” (NIETZSCHE, HH I, §111, p. 83).
Contudo, a racionalidade humana desenvolveu-se e o grande mistério da natureza começa a ser desvendado. Naturalmente, a religião perderia seu espaço, pois que o homem agora é capaz de superar as dificuldades e angustias diante da natureza, agora desvendada e dominada. Entretanto, o que aconteceu foi completamente oposto: a religião permaneceu presente, talvez de maneira mais consistente e forte do que anteriormente. A causa desse fixar-se se encontra no fato de que ela agora se vinculou a um “Ser supremo” que tudo criou e exige do homem amor, respeito e obediência. A religião agora se torna moral, uma vez que “existe um Deus que de nós exige o bem, que é guardião e testemunha de toda a ação, todo momento, todo pensamento, que nos ama, que em toda desgraça deseja o melhor para nós” (NIETZSCHE, HH I, §109, p. 79).
O homem, que sempre lutou pela sua liberdade, mesmo perante os mais desoladores perigos, agora se torna preso a uma instituição que normatiza o que deve ser feito, o que deve ser preferido e o que deve ser deixado de lado. Como isso se torna possível? A religião possui dois artifícios que prendem o homem a si: auxílio na luta contra o infortúnio e a presença de uma verdade absoluta.
A raça humana está a todo momento desesperada para libertar-se de todo sofrimento e, quando encontra meios para superá-los, abraça os até mesmo cegamente. Uma das possibilidades para libertar-se será a busca da raiz do problema tentando saná-lo. Agindo desta forma o indivíduo não só se tornará mais forte, mas descobridor de suas limitações e, ao mesmo tempo, da sua força em superá-las. Contudo, o caminho proposto pela religião não é esse: ela propõe uma forma de ressignificação do sofrimento: “A religião e a arte (e também a filosofia metafísica) se esforçam em produzir a mudança da sensibilidade, em parte alternando nosso juízo sobre os acontecimentos (…), em parte despertando prazer na dor” (NIETZSCHE, HH I, §108). Com isso, a religião não supera o sofrimento, muito menos faz com que o homem evolua, ela apenas os engana:
A alma humana e suas fronteiras, toda a extensão até ao presente atingida nas experiências da alma humana, os cumes, as profundezas e as distâncias dessas experiências, toda a história da alma até aos nossos dias as suas possibilidades inexploradas: eis a reserva de caça destinada ao psicológico nato e amigo da “grande caçada”. Mas quantas vezes, com desespero, diz para si mesmo: “ai de mim, que estou só! Tão só e com essa floresta tão vasta e virgem!” Então deseja algumas centenas de auxiliares e perspicazes cães de caça que poderiam pôr na pista da alma humana, para aí perseguir a sua presa. Em vão: ele verifica sempre, intensamente, com amarga decepção, quanto é difícil encontrar auxiliares e cães para tudo aquilo que justamente aguça a sua curiosidade. (NIETZSCHE, BM, §45, p. 64).
Quanto à verdade, Nietzsche não vê como a religião pode fundamentar-se e firmar-se afirmando possuir alguma verdade, pois que, “até hoje nenhuma religião, seja direta ou indiretamente, como dogma ou como alegoria, conteve uma só verdade” (NIETZSCHE, HH I, § 110, p. 82). A única verdade que podemos retirar da religião para Nietzsche é que ela permanece metafísica e, enquanto metafísica permanece moral.
Conclusão
A morte de Deus no pensamento Nietzschiano é o ápice de uma desconstrução genealógica que perpassa toda obra de Nietzsche. Se anteriormente a constatação presente na Gaia Ciência da morte de Deus, a religião já era tida como um amuleto ou caminho para uma ascensão social, como vemos no aforisma 115 de Humano, demasiado humano. Agora ela se apresenta apenas como um caminho para que pessoas pobres em espírito consigam superar seus sofrimentos.
Concluímos, portanto, que a religião no pensamento nietzschiano esteve presente na humanidade como possibilidade para a instauração do denominado niilismo passivo, no qual o homem renunciava a si mesmo para que valores superiores pudessem governar e administrar as suas ações. Porém quando esse niilismo é superado pelo niilismo reativo a religião perde sua função e se apodera apenas de espíritos pobres e inferiores que não conseguiram ainda assumir suas mazelas, seus defeitos e rir de tudo isso, procurando um eterno retorno na vivencia de um Além-do-homem.
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*Graduando em Filosofia pela Faculdade Arquidiocesana de Mariana Dom Luciano Mendes
** Graduando em Filosofia pela Faculdade Arquidiocesana de Mariana Dom Luciano Mendes
Referências
LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Trad. Lúcia M. Endlich Orth. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Além do bem e do mal. Trad. Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. (Biblioteca clássica).
______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (Companhia de Bolso)
VOLPI, F. O niilismo. Trad. Aldo Vannucchi. São Paulo: Ed. Loyola, 1999. (Leituras Filosóficas).
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Pois é… Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: a perseguição aos judeus. Portanto, nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. Contidos num cercadinho intelectual, no máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não tolera indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.
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