Jorge Luiz Barbosa
A civilização ocidental teve uma tendência muito freqüente de reduzir tudo o que era estranho, enigmático, obscuro às condições de inteligibilidade do intelecto. Nesse sentido, tudo será submetido à pretensa investigação do intelecto humano. Qualquer evento imprevisível do futuro ou outra coisa que não pode ser ordenada e compreendida ou manipulada pela razão será excluído. O homem do Ocidente deseja captar, então, tudo através de uma mente racionalista, tudo deve ser conhecido, compreendido ou sintetizado. A razão busca tornar todas as coisas presentes no mundo, inteligíveis e conhecidas totalmente. Nada pode estar fora desse âmbito racional que age de maneia dominante sobre todos os aspectos existenciais e deseja trazer para a inteligibilidade “Deus, o agente individual, o passado histórico, o futuro progressivo, as culturas não-ocidentais e qualquer tradição cultural que seja mitológica ou ‘supersticiosa’ por natureza” [1].
Percebe-se, nessa ânsia da razão em querer racionalizar todas as facetas existenciais, que o indivíduo é reduzido a uma multidão sem faces e despido de sua própria liberdade de ser. O perfeccionismo extremo do ocidente racional quer ter o maior grau de perfeição que acesse à realidade existencial. Nesse sentido, o seu interesse primordial foi a totalização, ou seja, reduzir tudo à uniformidade, que concederia um poder maior à racionalização [2]. Essa totalização plena do indivíduo implica que qualquer aspecto do eu possa ser reduzido e compreendido pelos valores da redução feita pela operação racional. Dessa forma, a vida do ser humano não será mais marcada pelo mistério interior, pois tudo estará dominado pelo crivo da razão.
Levinas mostra que a condição humana não é simplesmente moldada pela racionalidade, mas é dependente de muitos elementos estranhos que essa razão busca clarear e compreender. Há no homem a “ordem do outro”, que são as partes principais da existência humana que permanecem às escuras e de forma enigmática. Nesse sentido, o eu e o mundo do Outro não podem ser reduzidos aos critérios colocados pela razão. O Outro se apresenta como aquele que se recusa a ser conteúdo, que não pode ser englobado pelos sentidos existenciais. Para Lévinas, então, o “outro” sempre inunda o espaço do “mesmo” e rompe os perímetros do que é conhecido. Como esse outro não se insere na esfera de uma totalização ou do mesmo, ele ganha o estatuto de infinito. A sua presença extravasa qualquer compreensão da razão. A ideia do infinito vai além dos poderes que a razão almeja ter. Da revelação do rosto, surge a ideia do infinito, que não se inscreve na totalização que o “mesmo” pretende.
A expressão do rosto de permanecer como um Outro se recusa à posse, aos poderes de dominação racional. O Outro coloca o eu sob o aspecto da responsabilidade, justamente porque os seres humanos expressam sua singularidade na relação social de “maneira misteriosa”. Isso nos deixa claro que há algo na interação dos homens que nos instiga, mas que permanece irredutível e inexplicável. Assim, a responsabilidade do eu será uma responsabilidade pelo rosto do Outro. Isso impõe no eu a sua condição de liberdade. A responsabilidade o tornará livre. Essa responsabilidade com o outro é fundamental, pois nascemos num mundo relacional que não podemos ignorar ou fugir. O face-a-face com o outro vai exigir de nós a responsabilidade. Dessa forma, descobre-se a experiência da liberdade no processo de relacionar-se com o outro. O eu vai se colocar sempre com um novo e necessário compromisso para o bem-estar dos demais.
O rosto do Outro sempre vai exigir que reconheçamos as nossas responsabilidades. Diante disso, na sua existência, o homem não poderá recusar a sua responsabilidade, pois estará ligado ou perseguido constantemente pela presença do outro. A mera presença do Outro faz com que assumamos esse nosso compromisso. Por isso, o Outro que se apresenta promove a liberdade do eu. Assim, a pluralidade do mesmo e do outro será mantida. Não haverá a totalização dos aspectos do homem que a razão ocidental pretendia.
Levinas quer nos mostrar com o princípio de responsabilidade que a outra pessoa é um outro mundo que brilha através do seu rosto, e que não pode ser redutível às ideias que a razão deseja. O Outro se manifesta para o relacionamento de forma misteriosa, exigindo através do infinito presente no seu rosto a responsabilidade do eu. Por isso, o eu estará sempre sendo perseguido pelas exigências que a face do outro coloca.
O infinito diante do eu condiciona a sua própria vida à prática da não-violência Quando o eu se deixa conduzir por aquilo que a razão ocidental orienta, corre-se o risco de cometer a violência e contra o rosto do outro e também contra si, pois deixa de lado o face-a-face. A experiência que se faz de reduzir tudo a uma totalidade compreensível faz com que a alteridade do indivíduo desapareça.
O que houve com o projeto da racionalidade foi o esquecimento ou ter ignorado que os seres humanos são diferentes de qualquer coisa, até mesmo da compreensão que temos de nós mesmos. Nesse sentido, o homem age como se não estivesse envolto na realidade, mas como se tivesse poder para totalizá-la e abarcá-la com a razão. Vê-se que a filosofia despojou o eu de sua peculiaridade individual e colocou em seu lugar o poder de agir como se não fizéssemos parte do universo [3].
É necessário que se tenha uma ruptura com a pretensão de totalizar o rosto do Outro, pois dessa forma estará presente a abertura para a subjetividade de cada indivíduo. Sabendo que a subjetividade vai além do que se apresenta nos traços físicos do rosto, o homem tem a possibilidade de acolher o infinito. Diante da expressão do infinito, instala-se a necessária responsabilidade para com o Outro. Mediante o mistério do rosto, a humanidade vai se relacionar-se com mais responsabilidade para não violentar a subjetividade da própria de cada pessoa. Isso impedirá a configuração da totalização diante do face-a-face.
Diante disso, percebe-se que Lévinas quer afastar do seio humano o “desejo de poder” sobre as outras pessoas para compreendê-las totalmente através dos aspectos físicos. A relação social deve ser marcada pela responsabilidade que permite ao Outro se expressar em sua mais profunda subjetividade. Isso faz com que todos nós experimentemos a ideia do infinito presente no rosto do outro e, assim, respeitemos a sua alteridade. Dessa forma, elimina-se o projeto da razão ocidental de querer abarcar todas as coisas e totalizá-las, ferindo o infinito no rosto e reduzindo-o a uma simples coisa. Esse respeito constante pelo outro conduziria a humanidade a uma fraternidade [4] entre os indivíduos mediante a nudez infinita do rosto de cada ser humano.
Referências
HUTCHENS, Benjamin C.. Compreender Levinas. Trad. Vera Lúcia M. Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2004.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
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[1] HUTCHENS. Compreender Levinas, p. 29.
[2] Cf. HUTCHENS. Compreender Levinas, p. 31.
[3] Cf. HUTCHENS. Compreender Levinas, p. 61.
[4] Cf. LÉVINAS. Totalidade e infinito, p. 192.
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muito esclarecedor. a ontologia é muito ressecante, Levinas nos devolveu a poesia